30.4.04

A escuridão, bem diferente da que fazia eu me espremer de covardia na cama, era toda afago. Sentei ao lado de minha tia (qual? Me eximo de usar a cínica desculpa de que estava escuro; não lembro qual tia mesmo) e o cheiro de bala de menta se acomodava ao breu dando a certeza de que o preto era uma cor com fragrância, e doce. Até hoje, quando chamo de volta a experiência, aspiro com a alma aquela essência de menta – sinônimo ancestral de escuro de cinema. Mas eu ia dizendo: o retângulo lá na frente explodiu silencioso; minha retina acolheu o clarão como a escuridão havia me recebido: com familiar surpresa. No meio da tela (era tudo em sépia, pois que o sépia é o preto e o branco com saudade das outras cores) estava ela, cabelo roçando os ombros, e sentada debaixo de uma árvore, sobre uma estampa de folhas finas, alegres, quase desenhadas. Suas pernas estavam encolhidas sob a saia espraiada, o que eu via dela acabava na borda arredondada do tecido – a partir dali, só folhas. Meus olhos, representados dignamente pela câmera, circundaram a árvore, a saia, os chuviscos do sol que furavam a copa da árvore e acendiam de leve, aqui, ali, ali e ali, o sépia das folhas no chão. E o rosto, o rosto dela, o queixo levantado quase nadinha, o suficiente para deixar exalar o aspecto de quem se sabe presente na remota memória de alguém, de quem se imagina acariciada pela lembrança que extrapola a lente de uma câmera. Aí começou a música.

Eu tinha cinco, seis anos. Foi minha primeira vez. Nunca soube que filme foi esse, quem ela era. Acho que vejo filmes compulsivamente – o que faz muitos desavisados me confundirem com um cinéfilo – para, um dia, por acidente, dar com essa cena: ir reconhecendo-a aos pedaços, cair em mim ao identificá-la por completo e ver trinta e tantos anos se dissolvendo em meio à essência de menta. Então acho que as coisas – todas – deverão começar a fazer algum sentido, caramba.

ao mirante, nelson

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