7.4.04

O causador da sua insônia


Esta noite você me chutou enquanto dormia. Eu percebi, entre-sonos, sua agitação. Fiquei todo encolhido, só ouvindo seus movimentos. Você se virava de um lado para o outro, e depois do outro lado para o um. E eu lá, roncando meu ronco mais fingido, só para admirá-la como se fosse um intruso invisível.

Fazia calor no nosso quarto e me era quase impossível disfarçar a agitação de percebê-la acordada na penumbra quente da alcova. Fechava os olhos forte demais e, por certo, fazia uma careta,. Não sei como você não percebeu. Quando você me chutou, quase gritei, mas fingi que dormia e apenas falei algo ininteligível, como se sonhasse muito profundamente com algo que seu chute poderoso foi incapaz de atingir.

Na minha mentira, meu amor cresceu. Você se virou para mim, certa hora, e eu abri os olhos um tiquinho de nada, o suficiente para vê-la muito embaçada, no seu olhar apaixonado. Poucos homens têm este privilégio que é ver a mulher dormindo um semi-sono apaixonado. Minha malandragem, porém, quase deixa escapar um sorrisinho de felicidade. Temi; você poderia estar pensando que eu sonhava com outra, não é mesmo?

Você estava insone, inquieta. Me chutou, virou para mim e ficou me olhando longamente. Eu cansei de controlar o olhar fingido e virei para o outro lado. Fiz dengo e você me envolveu como se eu fosse um ursinho de pelúcia. Fazia calor, reclamei lá das profundezas da minha mentira. E a escutei se sentar na cama, olhando para o nada.

Virei de barriga para cima. Os ouvidos aguçados demais escutavam sua respiração. No silêncio da noite, seu inspirar e expirar eram inspiradores. Eu seria capaz de compor um poema cheio de lugares-comuns naquela mesma hora. De fato, acho que foi isso o que fiz, antes de pegar no sono de novo e dar uma roncadinha e acordar com meu próprio grunhido de homens das cavernas e abrir os olhos como quem não quer nada e surpreendê-la ainda ali, sentada, agora me encarando e rindo.

Na penumbra, seus contornos ganham inequívocos ares de mistérios, já cantados por um milhão de canções das quais não me recordo. Há os cabelos, que ficam ainda mais negros e, por que não?, lodosos. Tenho vontade de entrar no breu das suas mechas e fazer morada ali, entre um e outro fio de cabelo branco. O nariz desponta no seu rosto e, surpresa!, vai fazer sombra lá na parede, onde você fica parecendo uma deusa grega, perseguida por um gatinho curioso à caça da sombra intrusa. A boca fica ainda mais indecisa entre o sorriso e a seriedade. Os olhos são como pequenas estrelas perdidas na imensidão do quarto.

Eu a isso tudo vejo durante as noites em que você é a causadora da minha insônia. Noites em que você se transforma em observadora de mim, bicho selvagem andando pela casa à procura de sono. Como somos espelho um do outro, esta noite é minha vez de vê-la se levantar em passos meios perdidos, em direção ao banheiro. Você indo e eu encarando o gato que dorme abraçado e se sente tão carente quanto eu naquele minuto. Perguntamo-nos, gato e eu, quanto tempo pode demorar um xixi noturno. À noite sua ausência fica mais longa e mais insuportável.

Escuto a porta do banheiro se abrir e seus passos de volta à cama. Novamente sou fingidor de um sono que não me consola.

Você se deita ao meu lado, mas não pode ver. O resto da noite será todo orgulho: sou o causador da sua insônia, bem sei. E já faz tempo que nem eu nem você conseguimos passar a noite toda envoltos por Morfeu; porque ambos temos um compromisso. Na madrugada é que nos adoramos mais e mias; e no silêncio de nosso sono mentiroso e no cuidado do nosso despertar que acabamos por revelar um ou outro aquilo que a correria do dia nos impede, às vezes. É sob a luz da lua que nosso amor se revela. Na treva divina dos amantes.

O Polzonoff - inteligência e leveza andam juntas

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