11.4.04

PÁSCOA

Da série NINGUÉM É O MESMO, MESMO QUE SE REPITA

Nublava a Páscoa. Não me lembro de outro tempo. Minha avó na Sexta Santa não arrumava a cama e só penteava o cabelo às 15h. Folgava de si. Carregava um terço marrom para ir à missa e um terço preto para o quintal. Rezava a céu aberto. Os ovos eram recheados de amendoim. As galinhas ficavam ruivas nessa época. Eu tentei fazer suspense para minha filha pequena e desenhei patas de coelhos com pomada no armário. Nunca consegui apagar as patas. O vizinho Riomar tocava violão com garfo. Quando perdeu seu amor, cortou as cordas e fez uma forca do violão no pessegueiro da praça. Guaporé acordou com um violão enforcado. Cidades do interior com lombas são religiosas. É preciso muito Deus para subir inclinado. Em dias de casamento, se descia a ladeira. A procissão subia. Fui o anjo da guarda, até que a cola de uma das asas soltou e terminei manco de vôo. Colocaram uma coroa em minha cabeça que eu entendi como antena de inseto. Um inseto de lâmpada. Meu irmão Rodrigo usava uma faquinha para abrir os ovos grandes, retirar o recheio e os brindes. Montava o celofane de novo e não se percebia o esvaziamento. Não se come carne na sexta. Minha mãe sumia com todos os salames e presuntos da casa. Ao meio-dia, vinha o "Senhor Tem Alguma Coisa Para Dar?" bater a campainha. Ele tirava o chapéu e pedia a gentileza de uma moeda. Mais educado do que o próprio chapéu. Levou o casaco surrado e quadriculado de meu pai. Um casaco horrível que meu pai não largava de jeito nenhum. Meu pai ficou louco quando não o achou. Ele gritava: cadê o meu paletó? Aquilo não era paletó, mas todo mundo compreendia. Um dia, ao passear pelo bairro, encontrou o "Senhor Tem Alguma Coisa para Dar?" com seu casaco. Deu uma nota preta para ganhar o casaco de volta. Comprou sua vaidade. O casaco ressuscitou para o desespero das outras roupas. Páscoa não é um dia triste, mas um dia misturado, as palavras andam de pernas-de-pau para assustar as crianças. No cesto, a palha faz o chocolate inflar. A palha é a mola do sol.

Fabricio Carpinejar

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