Por que não posso falar mal dos cegos?
"Mas ele é cego!"
Sim, eu sei; por isso que não gosto dele. Não gosto de cegos, são um estorvo. Dizem que é maldade de minha parte, mas sigo com minhas piadas e insinuações maléficas -- não consigo respeitar um ser guiado por um cachorro, menos funcional que um cão bichento qualquer. Ojeriza; e proporcional tanto à sofisticação da alva bengala, quando à estupidez do motivo por que perderam a visão, ou à raça do animal.
"Mas ele é cego!"
Deficiente visual. Você não fala mal da amiga que engordou três quilos? Do vizinho que não faz a barba? Da conhecida que abortou? De qualquer outra mesquinharia? Prescindo de seus conselhos e admiração; deixe-me amolar meus cegos em paz; aproveite e fofoque a meu respeito pelo telefone...
Admito que falo mal dos cegos por capricho, que poderia falar mal de outras categorias, talvez mais perniciosas ou meritórias, e que nunca perdi um emprego devido a cotas para cegos -- quem me dera --, porém nada posso fazer, também é questão de costume.
Minha infância inteira foi defronte a uma associação de cegos. Havia também as senhoras em cadeiras de roda, mas elas me ofertavam doces. Os cegos só me davam trabalho. E um deles era alemão.
A cegueira é o mal típico da raça ariana. Não que haja mais cegos em nossa piscina genética que em qualquer outra, porém não há povo obstinado, cabeça-dura e pertinaz como o nosso. Não é uma boa combinação.
O alemão foi atropelado pelo menos duas vezes, uma à minha frente. Não aceitava ajuda, considerava-se uma mago da contagem e da audição. Era a piada do bairro. Fingia que não sabia, desprezava-nos. Deve ter morrido na terceira.
Mas se falo deste alemão, não é só por capricho ou costume, mas porque foi o desprezando que me converti num igual. Tudo que tenho devo a este cego, e portanto nada mais natural que continuar a agredi-lo anos após a sua passagem.
E se por isso me disserem mau caráter, com um rascunho de riso no canto da boca, dir-lhes-ei o que penso da bondade hodierna: nunca tantos amaram outros tantos por tão pouco. Churchill, traga meus charutos!
sinfonia em dies iræ
21.7.04
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