Um dia estranho
Devolvi o apartamento. Não foi fácil e me custou uma grana legal - que vai fazer falta. Dei dois cheques que ainda não têm fundo, mas não estou preocupada, conheço minha própria capacidade de ganhar dinheiro. Ainda querem o valor da pintura do apartamento - eu não pintei, não tinha como, não tinha dinheiro nem tempo pra eu mesma pintar, já me bastou ter que esvaziá-lo e limpá-lo sozinha com a minha mãe - mas isso também não me preocupa.
Então, depois que consegui os recibos de devolução do apartamento e devolvi as chaves, fui andando a pé por Santo Amaro pra voltar pra cá, parei num café, comi um salgado e tomei um chá gelado. Era mais ou menos meio dia e meia. Andei um bom pedaço a pé até encontrar onde era o ponto de ônibus correto. O tempo deu várias voltas em si mesmo, aquelas ruas são ruas que eu conheço desde criança, ali perto é o teatro onde eu dancei quando estudava ballet, a escola onde a minha mãe estudou quando criança, o pronto-socorro onde um grande amigo meu velou a mãe.
Quando eu ia atravessar a avenida, finalmente perto do ponto de ônibus, pensei comigo mesma "isso aqui está perigoso, muito propício a atropelamentos".
Algum de vocês já foi atropelado? Eu já.
Um atropelamento é uma coisa curiosa. Você está atravessando a rua, você acabou de olhar pra verificar se vem vindo algum carro, se pode atravessar e de repente, do nada, tem um carro em cima de você.
Um carro é um carro, feito de aço, move-se a uma velocidade muito superior a de um ser humano atravessando a rua, e ainda por cima, em um atropelamento, vem de encontro a você.
Eu fui atropelada de forma absolutamente espetacular há quase cinco anos. Foi em 1999 ou 2000, eu não me lembro bem. Era inverno, eu vestia uma calça comprida, botas e um sobretudo lindo que ainda tenho. Fui atravessar a avenida principal aqui do bairro, não tinha nenhum carro vindo, eu atravessei com toda a calma. Um carro virou uma esquina, bem em cima de mim.
De repente, do nada, tinha um carro em cima de mim.
Esses eventos acontecem em frações de segundos que parecem uma eternidade.
De repente, tinha um carro em cima de mim.
Eu me lembro de ter entendido que tinha um carro batendo em mim, relaxei o corpo todo, deixei o carro vencer. Era um carro. Eu sou apenas uma pessoa, músculos, ossos. Relaxei. O carro esbarrou em mim, eu caí sobre o capô, o carro parou, eu deslizei sobre o capô até o chão. O carro estava parado, o motorista freou.
Quando uma pessoa percebe que vai atropelar outra pessoa, pisa no freio com toda a força que possui.
O carro parou. Eu deslizei sobre o capô até o chão e esperei. Nada. Eu me levantei devagar, o motorista estava fora do carro, parado ao meu lado, pálido. Eu olhei pra ele e disse sorrindo "Tome mais cuidado, você pode matar alguém."
Eu não tive um arranhão.
Hoje eu lembrei disso não por causa do cruzamento perigoso ali daquela avenida que eu atravessei com calma e segurança, mas porque, alguns metros e minutos depois, uma moça foi atropelada.
Eu já estava no ponto de ônibus quando duas senhoras, em visível estado de choque, pararam ao meu lado comentando. Eu olhei e vi a moça caída, cercada de uma meia dúzia de pessoas chocadas. Naquele momento eu pensei "não sei o que posso fazer, mas eu vou lá ajudar" e lembrei de uma coisa que o Alê escreveu uma vez sobre ajudar pessoas em acidentes.
Eu estava calma, eu sabia o que devia e não devia ser feito. Eu fui lá.
O motorista do carro estava parado ao lado da moça, totalmente chocado. Eu perguntei pra ele se já tinha chamado o socorro, ele disse que sim. Eu perguntei há quanto tempo, ele disse que há uns cinco minutos. Então eu me abaixei do lado da moça e conversei com ela. Perguntei-lhe o nome - Socorro - ela respondeu. E eu falei com calma que ela não tivesse medo, não ficasse nervosa, que ela não tinha nada sério porque ela estava ali acordada, conversando comigo, se fosse sério estaria inconsciente, que já tinham chamado a emergência, que eles estariam ali logo.
Ela sorriu pra mim, visivelmente aliviada. Ninguém tinha pensado em falar com ela.
Cinco minutos depois, os bombeiros chegaram. Com uma presteza de dar inveja a filme americano, mediram o pulso da moça, checaram as pupilas, colocaram um colar ortopédico nela, entalaram a perna da moça. Ela tinha fraturado a tíbia e o perônio, quase fratura exposta.
Assim que terminaram, eu fui pegar o meu ônibus, que por sinal, chegava ali no ponto naquele minuto.
Eu já fui atropelada na minha vida, mas não sofri nem um arranhão. Não tinha ninguém pra me dizer que tudo ia ficar bem, mas hoje, eu estava ali, pra dizer para aquela moça chamada Socorro que tudo ia ficar bem. Por mais difícil que tenha sido o resto do meu dia, não foi tão difícil.
Eu já fui atropelada na minha vida, mas não sofri nem um arranhão.
MadTeaParty passa por cima.
28.7.04
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