29.7.04

Lembranças

Será permitido levar apenas uma única lembrança desta vida, à escolha. Tomei-me como parâmetro e pensei que não haveria quem não hesitasse pelo menos alguns minutos antes de escolher, talvez sem chegar a qualquer conclusão.

Propus o problema a meu pai, que destruiu minhas expectativas ao responder em menos de um segundo.

Perguntei-me se, afinal todas as minhas lembranças eram assim tão intensas que, portanto, fosse tão difícil escolher entre elas ou se, ao contrário, fossem tão banais que o esforço não valesse a pena. Demorei um pouco até descobrir qual dentre tantos fatos eu levaria hoje para a eternidade, caso fosse necessário. E isso foi ao olhar para aquele homem ao meu lado, que acabara de revelar-me alguns segundos lindos contidos naqueles quase 60 anos de vida.

Pai e filho, voltávamos do cinema, como tantas vezes fizemos. Levávamos um doce para minha mãe. Éramos passageiros de um carro negro a atravessar a noite, não dois homens, mas duas lembranças.

Amores

Então, ainda sob o efeito de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, filme que eu e meu pai vimos naquela noite, resolvi aplicar a questão às mulheres que passaram por minha vida. Como regra impus não identificá-las, mas encontrar momentos suficientemente significativos para que, ao lê-lo, cada uma delas se enxergasse, assim como neles eu me vejo. Preferi também não escolher beijos ou outras intimidades, pois embora essas coisas sejam importantes, são óbvias. Também não usei uma ordem cronológica, tampouco de valor, a fim de que nenhuma delas, as lembranças, sinta-se privilegiada em relação às outras, afinal os amores não são maiores nem menores, mas diferentes. Assim, de cada um deles, espero que reste ao menos esses momentos. Diversos, mas iguais em importância.

Chuva na janela

Parei com o carro perto de sua casa para deixá-la. A chuva caía. A luz da rua atravessava o vidro do carro. As gotas que escorriam em abundância pelo parabrisa eram, assim, projetadas em nossa pele clara. Formavam desenhos vivos, como se a carne se mexesse, um movimento que não contava história alguma. Vertendo do ombro até as mãos, o fantasma da água nos prendeu durante mais alguns minutos um ao outro, à água, ao vidro, à luz, ao Universo.

Sol no olho

Deitada sobre minha cama, uma mulher - que até a pouco era uma menina que, como sempre, fugira do cárcere na madrugada e encontrara abrigo em meu quarto pela manhã - me olhava, de baixo para cima. Estava na beirada, pois a paixão, que é urgente e desconhece a geografia dos móveis, lançou-nos assimetricamente na cama e aleatoreamente no mundo. A cortina alaranjada deixava passar alguns raios de sol de inverno. Os olhos dessa mulher ficaram, então, tão claros que me atravessaram e, pela primeira vez, senti-me transparente.

Um encontro e risos

Eu ainda não a conhecia. Ela vinha pela rua que vai dar em minha casa. Trocamos algumas palavras e sorrisos. E, quando ela se foi, seguindo o seu caminho, para minha surpresa ainda estava ali comigo, como um eco. Dela, vou guardar uma ação, um verbo chamado rir junto. Sempre ríamos, sorríamos e o mundo era feliz em cumplicidade. No fundo, naquele instante em que eu a encontrei, tudo o que eu queria era estar na lista de supermercado dela.

Direção perigosa

Sempre que entrava no carro, estivesse frio ou quente, abria uma fresta fininha na janela. Disse-lhe que gestos sutis como esse compunham uma pequena gramática amorosa. Ainda meio bêbado da noite, dirigi até a casa dela em segunda marcha para não precisar soltar-lhe a mão. Creio que ela entrou na minha vida, e saiu dela, por essa fresta aberta na janela do passageiro. Além das brincadeiras das palavras, o amor, de fato, entra pelas frestas e é passageiro.

Noite arriscada

Foi então que percebi que estava com a mulher errada em um bar. Bebi o resto do que havia no copo e dirigi até a casa da certa. Apertei a campainha e disse que queria subir. Seus pais, que nunca, nunca, nunca a deixavam sozinha haviam viajado. Passei a noite ali, como jamais pude depois e como jamais pudemos fazer novamente, fosse na minha casa ou na dela. Pela manhã ganhei um livro e um sol fresquinho de sábado.

A minha lembrança

Então eu disse a meu pai que a minha lembrança era uma pipa de oito lados feita por ele com plástico transparente. Ela possuía a qualidade de, quando muito alta, desaparecer contra o azul claro do céu. Pesada, era difícil fazê-la subir. Durou um dia apenas. Logo ficou presa nos fios de luz. Durante algum tempo pensei que ele iria subir ali para tirá-la. Mas fomos para casa. Quando passo por aquele lugar onde a empinamos, olho para verificar se ele ainda não está ali. Por vezes, me engano.

A lembrança do meu pai

Meu pai disse que lembrava de um campo de lilases que havia em frente à casa onde passou a infância. Eles formavam touceiras tão altas e firmes que, mesmo depois da chuva, era possível deitar ali sem se molhar. No meio de cada tufo verde, nasciam as flores lilases que davam nome à planta. Esse pensamento lhe vem, às vezes, quando não espera. Certo dia, depois de uma tarde inteira de diversão com os amigos da rua, ele deitou ali, cansado, até que as estrelas começassem a surgir uma a uma.

Em que mundo estamos para que isso pareça ficção?

(…)

Cracatoa (simplesmente sumiu)

Nenhum comentário: