17.9.04

É nada

Ela o pegou com um monte de revistas de musculação espalhadas em leque no sofá. Ele nem ficou embaraçado; só puxou pelas mãos dela e a fez sentar.

-Escuta.
-Diz.
-Eu sou gay.

Ela olhou pra ele um segundo e meio e disse:

-É nada.
-Eu estou dizendo...
-Pois sim, que eu conheço você. É que nem aquela história do trenzinho. Cismou e cismou que queria uma sala só pro trenzinho, e agora ele está lá pegando pó e ocupando um espaço danado. Brincou com o trenzinho essa semana? Diz: brincou?
-É diferente dessa vez, Clara.
-É nada. É que nem o trenzinho. Não dou uma semana...

Uma semana depois ele estava no sofá vendo um documentário sobre uma mulher que passava a mão na barriga de tubarões pra fazer eles dormirem, e eles dormiam, quando a mulher voltou do trabalho e foi reclamando sem nem olhar pra ele:

-Olha aí. Falou falou que era gay, que queria ser gay, que ser gay era o máximo, e agora seus amigos gays estão aí jogados num canto um em cima do outro pegando pó. Posso pelo menos colocar tudo no quartinho do trem?

De fato, havia quatro gays pelados no chão pegando pó, um deles inclusive de bigode, em diferentes graus de inconsciência e abandono.

-Mas e se eu quiser usar o trenzinho?
-Nunca vai usar! – ela gritou, perdendo a paciência e começando a arrastar o primeiro gay pra sala do trenzinho, pelas botas. –Até parece que eu não te conheço... Ei, o que é isso?

Havia uma sela no sofá e uma revista de equitação na mesinha de centro.

-Decidi que vou fazer equitação – ele disse, já sabendo que ia ter que ouvir.
-Ai, Senhor! Dai-me paciência...
-Você nunca me apóia em nada, Clara.
-Não dou uma semana pra ter um monte de cavalo pegando pó na sala. Depois quem é que limpa o cocô? Quem é que leva pra passear?
-Por falar nisso, um gay fez cocô ali.
-Você levou eles pra passear? Não, né? Na hora de trazer pra casa, “Oooooh, eu sou gay, que maravilha ser gay”...

Brigavam muito, mas eram felizes. No aniversário de 40 anos de casamento ele tirou os cavalos, os gays, as orquídeas, os aquários, os hamsters, as estátuas africanas e as pranchas de surfe do quarto do trenzinho - e o trenzinho também, junto com a estação, a igrejinha e os hominhos - e mandou fazer um ateliê pra ela pintar os quadros dela.

Clara pinta até hoje, mal e alegremente, ouvindo Gene Krupa. Às vezes ela pára de pintar pra fingir que os pincéis são baquetas, e gotículas verde veronese caem em todas as direções no chão de madeira escura.

Alexandre Soares Silva

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