13.10.04

ORAÇÃO AOS QUE NÃO VOLTARAM DO FUNDO DE SI

Por favor sempre às ordens volte sempre. Minha virtude é desatenta vaidade. A saber tudo, não sabia coisa alguma. A ser tudo, não fui coisa alguma. A chama é intransigente e não me deu tempo para arrumar meus pertences. Nem abracei a minha esposa, nem acenei aos filhos. Caminhei por onde não era, para descobri o que faltou fazer. Caminhei por onde não existia, para reparar onde não nasci. Não me pertenço. Queria me ter sem nada buscar. Queria me procurar sem me ameaçar. Escrevo porque não tenho nenhuma prova de que morri e tento me convencer de que ainda há vagas em meu corpo. Quando estou muito cansado, não durmo, porque fico cansado para dormir. Quando não estou tão cansado, descanso sem ritual e sem chinelos a esperar no portão. A insônia é um cansaço do cansaço. Não posso me renunciar, porque não tenho nada a perder. Não posso me desapegar, porque não tenho nada a ganhar. Na única vez em que pesquei, fisguei o anzol em minha perna. Eu me capturei e não me devolvi ao mar. O anzol puxou a carne como se fosse mar e o mar como se fosse carne. E toda pele ao sol é um grito. Minha maior amizade é com que desconheço, o que conheço de mim vira defeito. Não me atormenta ter sido assim, a esmo: por favor sempre às ordens volte sempre. Me atormenta que a imobilidade me tornou rígido e nego duas vezes para afirmar. Sou o filho que minha mulher teve com um estranho. O estranho sou eu. E a luz é suspeita para me devolver o rosto.


ENTRADA PROIBIDA

Eu admirava a escadaria estreita, ladeira somente calçada, beco com saída, jardim dos inços, que me levava a atalhar um quarteirão inteiro e chegar antes de mim nos compromissos. Vi que várias foram fechadas em Petrópolis, bairro de minha infância, em Porto Alegre. Gradeadas, com um portão de ferro e uma placa intimidando a entrada. Quem carrega a chave de uma rua? Quem virou o dono do deserto, do descampado, do terreno baldio, a ponto de bloquear o que é de livre-trânsito? Um chapéu nunca será um guarda-chuva, até porque um chapéu é mais calha do que telhado. Lúgubre como meus olhos, a escadaria entre as ruas Itajaí e Carazinho não vestia terno e gravata, muito menos andava de tênis e roupa esporte. Pela convivência, ficou com a cara de seus mendigos. Sua extensão lembrava alguém deserdado, que perdeu as posses em um jogo de pôquer. Usava um capote maltrapilho a arrastar pelas ervas. Seu capim apresentava a arrogância da grama. Realeza da pobreza, luxúria do abandono. Quantas crianças urinaram nos seus vãos, apressando o musgo? Servia para namorar depois da escola. O primeiro seio que toquei aconteceu nela, o primeiro seio mudou o sentido da minha mão para o resto da vida. Não tinha medo de assalto e de atravessá-la no escuro. Ela não desfrutava de poste de luz para escorrer em seus degraus. Degraus tortos como meus dentes. Exigia conhecimento de caso. Sabia seu andamento de cor: três degraus curtos, dois longos, quatro longos, três curtos, um menor do que todos, vinte curtos, dez longos. Treinava a pichação em suas paredes. Minha letra assobiou pela primeira vez em sua lonjura. Dava um jeito de antiguidade ao bairro, de segredos de família, de obscenidade. Uma escada-caracol dentro do estômago de uma ave. No final dela, há um asilo com cheiro de talco. Não deixava de ser a metáfora de minha vida, o caminho entre a infância e a velhice. Mas a cidade está com medo de envelhecer e fechou sua porta. Isolada de sua memória, envelhece mais rápido.

duplo
.:. Fabricio Carpinejar .:.

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