10.11.04

AMOROSO CONTÍCULO DE TERROR

Eis portanto o ainda tão belo rosto de Marcela com as lisas feições coaguladas e emolduradas pelas vivíssimas flores na borda do caixão. Como eu adoraria despejar tudo agora, agora, e que daqueles traços embaçados renascessem aqui e ali filetinhos de sombra, ensaios de espasmos ou mesmo tonalidades de cor, angústia e desejo de vingança; como me deliciaria ser o primeiro a perceber alguma forma de vida se espreguiçando para acordar encolerizada nesta fisionomia irritantemente sossegada, a partir de minha revelação: óbvio que te traí, meu amor. Te traí com todas as letras e todas as tuas amigas, te enganei tantas vezes quantas me permiti deixar a consciência guardada na gaveta do criado-mudo e sair à noite para meus, abre aspas, plantões. Não deu tempo de eu te ver me vendo tirar acintosamente a máscara de cirurgião tão apegado ao juramento de Hipócrates e pronto a correr aos leitos de hospital, a qualquer hora da madrugada, para acordar nas camas de Lenora, Helena, quem fosse. Meu sonho era ver teus sossegados olhos se abrindo de supetão e ah, finalmente dando acolhida ao maravilhoso brilho do rancor, presos ao meu olhar tão despudoradamente confessional, ao meu rosto sóbrio não mais te mentindo – mas pronunciando devagar e sereno as pontiagudas sílabas feito inesperada admissão no tribunal de júri, de deixar juiz e advogado tontos: te traí, meu amor, tantas vezes e não, jamais eu perderia a conta. Foram cento e noventa e duas, sem contar as três que – o que vejo? O que vejo, por deus, senão um filete de sombra, um pequeno espasmo no canto da boca de Marcela? Um projeto de sorriso que já estaria lá e eu não havia ainda me dado conta? Assim como os olhos, que me guardavam desde sempre por baixo das pálpebras tão fingidamente assentadas? Quem finge o quê, aqui? Tento avaliar melhor o traço giocondo no canto daqueles lábios mas não consigo; a última coisa que vejo é Marcela esticando as sossegadas mãos para fechar a tampa do meu caixão. Tudo escuro.

Ao Mirante, Nelson!

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