a cirurgia
O antes
Uma semana antes da cirurgia, me mudei para um apartamento no Leblon. Sim, eu deixei a Urca e isso é uma outra história. O importante é vocês imaginarem o clima de mudança, encaixotamentos e desencaixotamentos, o desgaste de reforma no apartamento novo, contatos inevitáveis com os péssimos serviços das concessionárias (ceg, light, etc.). Resumindo: muito stress. Tanto, mas tanto, que eu nem conseguia lembrar da cirurgia. Tinha imaginado que ia passar os últimos dias fazendo contagens regressivas como faço com o aniversário todo ano, afofando meu velho nariz diante do espelho, ficando nervosa, etc., mas nada. Na-da.
Até que, dois dias antes da cirurgia e a pedido meu, a Claudia fez minha revolução solar. Urano na casa um. Casa um = corpo. Urano = o imprevisível. Somado a alguns outros aspectos esquisitos do mapa, ficamos todos apreensivos, especialmente a Claudia, que tem cara de valente mas é medrosa medrosa. “Se fosse eu, eu desmarcava”, ela disse, e isso mexeu comigo. E se fosse mesmo acontecer alguma coisa? Mas sei lá, eu sou adepta daquele velho ditado, ninguém morre antes da hora. No mais, se fosse mesmo a minha hora naquela sexta-feira, então de nada adiantaria eu desmarcar a operação, porque eu provavelmente seria atropelada, ou meu elevador cairía no poço, ou eu levaria uma bala perdida, etc. Ninguém morre antes da hora, mas também ninguém engana a morte. É o que eu penso. Por isso não desmarquei a cirurgia e deixei as coisas como estavam.
(…)
Eram 70% de obstrução e eu não podia mais viver assim, independente de Urano, Netuno, Saturno e companhia. Então, com a cara e a coragem, fui para o abate.
O durante
Como eu disse, eram aproximadamente 70% de obstrução. De uns tempos pra cá eu não andava dormindo bem. Imaginem o efeito disso numa pessoa que, nas condições naturais de temperatura e pressão, já é mal humorada e antipática. Dureza. Então cheguei tranquila e esperançosa no Hospital Samaritano, em Botafogo. Seis e meia da manhã era o meu horário de entrada, e a cirurgia estava marcada para as oito.
Já dentro do quarto, eu olhava a necessaire que tinham me dado na entrada, achando o máximo ter cotonetes ali, porque eu sou uma pessoa vidrada em cotonetes. Cada louco com a sua mania. Aí entra uma enfermeira para fazer uma pequena “entrevista”, antes que uma segunda viesse testar meus sinais vitais.
“Você sabe, assim, mais ou menos, o seu peso e a sua altura?”
“Sei sim, 1,60m e 51 quilos”, eu sabia o peso certinho por causa da recente consulta no cardiologista.
“E você sabe mais ou menos o seu tipo sanguíneo?”
Como assim mais ou menos? Tipo: sei sim, é mais ou menos A, mais ou menos B e mais ou menos + ou -.
“O negativo”, eu resisti à piada, porque a coitada da enfermeira já devia estar virada ali há dias. Vai saber. Mas foi difícil segurar o riso.
Depois disso, me deram um comprimidinho azul muito muito amargo que me fez capotar. Nem vi quando me levaram para o centro cirúrgico. Só senti a mão do dr. Ronaldo, o anestesista, me dando um tapinha no ombro direito e dizendo:
“Paula, a cirurgia já acabou. Você está sentindo alguma coisa?”
Eu abri os olhos lentamente, vi aquela aparelhagem gigante de iluminação bem em cima da minha cabeça e um curativo enorme no lugar do meu antigo nariz, um monte de médicos em volta e disse:
“Eu quero fazer xixi.”
O cara riu, claro. E claro, eu tinha que pagar um mico. Fui pro quarto e o xixi virou a primeira novela da cirurgia. A enfermeira Helena me trouxe uma cumadre, que é uma coisa que jamais deveria ter sido inventada porque é absolutamente impossível de ser usada e, por isso mesmo, não consegui fazer nada nela. Muita, muita força e nada saía. E todo mundo em volta me olhando, o que era ainda mais animador. De repente, algum movimento positivo.
“Duas gotinhas, PUTAQUIUPARIU!”, eu gritei, e todo mundo riu de novo. Já dava pra ver que eu estava bem e que, principalmente, a mudança do nariz não tinha afetado em nada a minha personalidade: eu continuava mal humorada.
Eu estava sofrendo, minha gente. A bexiga doía como se eu estivesse num Uno Mille, numa estradinha de terra fictícia que liga o Brasil ao Japão, sem arbustinhos. Até pra São Judas Tadeu eu pedi ajuda, e olha que nem católica eu sou. Enchi tanto, mas tanto o saco das enfermeiras que, apesar de ter acabado de sair de uma anestesia geral, aceitaram me levar até a privada. Aí sim, consegui fazer litros de xixi, e amigos, aquele foi o momento mais feliz da minha vida. Resultado: ano que vem lá estarei eu na missa dos desesperados pra agradecer a São Judas a mijada mais maravilhosa de todos os tempos.
O depois
Durante o primeiro dia, meu único sufoco foi esperar até às 17:30 para poder tomar água (que eu já não tomava desde as 21:00 do dia anterior). Senti na pele o que é morrer de sede no deserto e acreditem: não bom. Ao todo, das 17:30 até as 9 da manhã do dia seguinte, quando tive alta, calculo que tomei, pelo menos, uns 30 copos d’água. Fora de brincadeira. Conseqüentemente, como vocês podem imaginar, fui ao banheiro umas 50 vezes, carregando aquele tripezinho com soros e remédios pingando na minha veia. Pobre do Paulo, que passou a noite inteira sendo acordado pelo meu tléc tléc tléc pra lá e pra cá.
A noite. Ah, a noite. A noite foi um dos piores momentos. Eu tinha acordado às 5 da manhã pra ir pro hospital e, obviamente, estava exausta lá pelas 10 da noite. Mas e conseguir dormir, com um tampão no nariz, o ar seco do hospital, bebendo um golinho de água a cada dois minutos pra não ressecar a garganta completamente e indo ao banheiro de 20 em 20 minutos pra não explodir? Quando deu duas da manhã eu entrei em desespero. Caralho, eu ia passar três dias sem conseguir dormir! Tive uma crise de choro, chamei a enfermeira e perguntei se ela podia me dar alguma coisa pra dormir. Passei mais uns 20 minutos chorando, o que foi um espetáculo à parte, porque vocês não sabem como é chorar sem poder mexer o nariz e com um tampão impedindo as melecas de choro de caírem. Cá entre nós, eu não gostaria de estar na pele do dr. Torinko hoje, quando ele puxar este tampão...
Vinte minutos depois, a enfermeira me trouxe um Lexotan de 3mg – o que já é super forte pra alguém que nunca toma nada, como eu - e, mesmo assim, ainda demorei uma meia hora pra pegar no sono. Foi um sono ruim, duas horinhas cheias de pesadelos. Descobri que meu sono de Lexotan é um inferno (estou convivendo com isso desde sexta, porque ganhei de “presente” do hospital o resto da caixa, pra conseguir dormir em casa também.)
Mas o grand finale mesmo mesmo mesmo só foi acontecer no dia seguinte, quase na hora da minha alta. Desde o meio da madrugada, na hora do Lexotan, eu estava sentindo uma dor na mão que estava recebendo o soro. Então, no sábado de manhã, na minha milionésima visita ao banheiro, a mão voltou a doer, dessa vez de um jeito forte. Gritei pelo Paulo e, quando olhamos o curativo, o esparadrapo que prendia a agulha estava se soltando. Sentada na privada, fiquei dois segundos na dúvida entre soltar o papel higiênico e apertar a campainha para chamar a enfermeira. Dois segundos que foram o bastante para a agulha simplesmente se soltar da minha mão. Os olhos do Paulo se arregalaram e eu olhei para a mão, que jorrava sangue em jatos que mais pareciam saídos de um filme vagabundo de terror, de tão fortes e ritmados: shlopt, shlopt, shlopt... Paulo apertou a campainha, abriu a porta do quarto e começou a gritar pelas enfermeiras. Enquanto isso, eu olhei para a minha mão toda ensangüentada, a minha camisola toda vermelha e, no exato momento em que me senti a própria Carrie, a Estranha, a enfermeira apareceu na porta do banheiro e eu disse:
“Estou ficando tonta”.
Devagarinho, encostei a cabeça no azulejo gelado e apaguei. Nunca tinha desmaiado antes na vida e foi bem esquisito. Porque, quando acordei, não me lembrava de quem eu era e, menos ainda, quem eram aquelas duas mulheres que tentavam me arrancar da privada e me carregar. Eu me debati um bocado mas elas acabaram conseguindo me arrastar, toda suada e ensangüentada, até o sofá do quarto, onde ficaram me reanimando com um ventinho na cara, pernas pro ar, etc. Patético, mas eu não podia sair do hospital sem dar um showzinho, né?
O diagnóstico completo está na enfermaria do Epinion - mau humor, mentiras e fé patológica
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