Ô, batíria!
No ano em que completaria 16, ele gritou seu “Fico” –enquanto a família toda ia, claro. Feriado era sempre aquela caca –excursões para a praia ou campo, horas de congestionamento, tudo lotado, chuva, tédio. Usando como desculpa a nonna que morava com a família e não viajava por motivos iguaizinhos, ele enfrentou a cara fechada do pai, os resmungos da mãe e começou a passar feriados em Sumpaulo. Um dos motivos principais era o fato de que a capacidade de patrulha da nonna era zero. Nove e meia, se tanto, ela caía dormindo, e bastava estar de volta antes das seis do dia seguinte, quando ela acordava, para escapar de qualquer controle.
Não, não se tratava exatamente de anseio irrefreável por walks on the wild side. Era mais a adultice da coisa –sair sozinho, ou o mais das vezes com outro amigo da catigoria “encostado na vó”, ir ao bar, assistir até a última entrada da última banda, dar uma canja com um dos 15 mil músicos que ele conhecia (sempre sobrava alguém tocando na cidade, em feriado –quem é que vai viajar quando pode fazer show?) Depois, longas caminhadas de volta, ou longas esperas movidas a Thomas Mann, Dostô, Thackeray, pelo ônibus da madrugada, saindo de uma em uma hora do ponto inicial na Praça da República. E havia sempre a perspectiva de que a amiga/major crush tivesse um surto de irredentismo germânico e resolvesse convocá-lo –ela sempre convocava, nunca convidava- para alguma coisa, caso cismasse de não acompanhar os pais teutônicos nas viagens de feriado à casa maravilhosa que tinham em um canto majoritariamente europeu da Riviera de São Lourenço (“argh, parece um Congresso de Nuremberg, lá”, resmungava Beate).
Ele gostava dela, ela sabia, nenhum dos dois tomava uma atitude por medo de funhanhar a amizade, feita daquela mistura de devoção e hostilidade ranheta tão peculiares da adolescência (quando ela e as amigas alemoas caminhavam juntas no colégio, ele sempre saudava a cena assobiando a “cavalgada das vaquinhas”, apelido que logo ganhou uso amplo na ala não ariana da população escolar). Eram amigos, muito a contragosto, por apego comum a determinadas coisas –um certo tipo de rock, qualquer tipo de livro- e por aversão comum a absolutamente tudo mais. Em especial aquilo que ambos, razoavelmente acostumados a passar períodos fora do Bananão, designavam “coisa de brasileiro”.
Das muitas “coisas de brasileiro” que abominavam, a mais disgusting sempre foi o carnaval. A parafernália toda causava engulhos a ambos –o frenesi compulsório, os desfiles interminavelmente bregas, as letras dos sambas, o baticum interminável de tambor (e nada de assar os missionários, comme il faut), o rebolado-de-branco-dizendo-no-pé. No ano do Fico, ele ficou. Ela ficou. E os dois planejaram o evento todo –iam ouvir Béla Bartók, iam ouvir Debussy, iam ouvir o Echo and the Bunnymen novinho que ela gravara do programa do Kid Vinil. E assistiriam a um monte de vídeos. Vídeos cabeça, claro. Porque Steven Spielberg é coisa de brasileiro.
Por medo da fofoca da governanta alemoa -chamada Bertha e tudo-, o QG da operação era a casa dele. (Todo dia, exatamente à meia-noite, toque de recolher dela em feriado, o motorista passaria para apanhá-la.) E tudo ia de acordo com os planos –jovens pretensiosos ouvindo música maravilhosa e trocando opiniões very supercilious sobre livros que eles mal entendiam- até o terceiro dia, quando a nonna decidiu se manter acordada depois do toque de recolher terceira idade, pra ver a Beija-Flor na Sapucaí, o que empatava o vídeo. O filme do dia era Bergman (porque no mundo não tem nada mais clichê do que jovens cabeça), e a solução que ele propôs, acatada com muita piadinha ginasiana de parte a parte, foi montar o aparelho no quarto dos pais, onde ficava a outra TV. Deitaram na cama, very VERY self-conscious, e botaram Det Sjunde Inseglet*.
Contemplar o gênio dos outros em ação é a major turn-on, em qualquer idade. Aos 16, quase abraçados numa cama de adulto e com três dias de blablablá intelectual zunindo nas orêia, não admira que cedessem. Por sorte ou azar, o vídeo enguiçou uns 10 minutos antes da Dança da Morte. O tranco do aparelho os tirou do transe. Os dois pularam da cama, morrendo de vergonha e, enquanto ele tentava “consertar” o vídeo, ela ligou e pediu que o motorista a apanhasse mais cedo. Na terça-feira, entendimento tácito, decidiram ir ao cinema. Assistiram Ghostbusters. E na semana seguinte, de volta às aulas, ele e os outros meninos estavam sentados na mureta que delimitava o pátio quando ela passou com a gangue alemoa. Os cinco assobiaram o trecho mais manjado da cavalgada das vaquinhas.
*O Sétimo Selo
Filthy McNasty
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