Raquel
É cedo, muito cedo e chove a cântaros em Porto Alegre. A temperatura caiu vertiginosamente e dos 36º, fomos parar em 17º.
Eu levanto com o sono grudado à pele, louca de vontade de ficar afofando a gata, enrodilhada em travesseiros, no edredonzinho cheiroso. Maldigo cada passo em direção ao banheiro, arrepios de frio no corpo em pé, apesar de ainda adormecido. Só bem depois que a água quente encharca os cabelos, molha o corpo todo, desperta os sensores da pele, eu acordo. Contrariada, claro. No dia mais gostoso de dormir dos últimos meses, chuvinha e friozinho, tenho que levantar mais cedo para fazer o bendito Raio X.
Saio sem café porque muito atrasada, enfrento um trânsito de inferno com a chuva atordoante, motoristas enfurecidos, nada que preste no rádio e esqueci os CD’s em casa. Brigo feito uma onça por uma vaga no estacionamento e me arrasto furiosa para dentro do Hospital Moinhos de Vento, cabelos arruinados, roupa úmida. Ai, que nojo.
Já sentada na sala de espera, olhos fixos nos meus pés. Será que a cirurgia é necessária? O ortopedista disse que melhor operar agora, sem artrose nos joanetes herdados da Vó Nininha. Penso no incômodo da cirurgia, anestesia, pós-cirurgia, recuperação de 40 dias. Cacete. Depois bota rígida, pé pro alto, nada de salto, horror, horror, horror. Temporada em Pelotas, dependendo da família. No auge do meu péssimo humor, percebo uma menina sentada perto que chacoalha irritantemente as pernas no ar.
Olho para ela como quem suplica trégua e ela entende. Pára imediatamente e sorri um sorriso de dentes de leite, muito pequenos e separadinhos entre lábios muito vermelhos, pele branquinha. Desconfio que o movimento era para chamar minha atenção.
Eu agradeço a gentileza com o melhor sorriso que consigo, entre o amarfanhado e o sem graça. Ela pergunta meu nome, respondo e retribuo a pergunta, mais como complemento da gentileza do sorriso que por vontade. Ela diz que é Raquel. Penso que com esse nome, ela deveria ter tranças, mas os cabelos estão presos num rabo de cavalo ralinho. Pergunto pela mãe, ela me diz que está falando com o doutor Marcelo. Ah.
Sigo na minha mudez casmurra, deixando claro que desisti da minha tentativa de ser simpática, mas Raquel não permite meu isolamento. Pergunta a minha idade e depois a data do meu aniversário. Ela diz que tem 7 e faz 8 em julho. A-hã.
Olho mais para Raquel. Tem braços e pernas bem longos, é toda esguia, elegante, senta-se bem, com uma postura linda para uma menina de 7 anos. Passaria fácil por uma princesinha russa. Os olhos são um breu e escondem um enigma, com toda certeza.
Um pouco antes da mãe voltar, Raquel me dirige os olhos como quem pede a minha mão e me pergunta muito naturalmente: "- Tu também veio fazer rádio?" Eu digo “hã?” para ter tempo de organizar o cérebro e ela repete: "- Tu também tem câncer?"
Nocaute, Raquel. Eu não consigo mexer os lábios. A mãe chega e possivelmente entende a minha situação difícil. Dá oi e sorri como quem me abraça, generosidade de família. Eu respondo num fio de voz que só vim tirar fotografia do pé. Raquel ri alto, dá a mão pra mãe e diz tchau.
Estórias da Carrocinha
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