19.4.05

CDV, BOA NOITE

– CDV, boa noite.
– Boa noooooiiite, caríssimo atendente! Como vai essa força? E a fam…
– Menos, senhor, menos. Lembre-se do verdadeiro motivo por que ligou para cá.
– Mmmm. Tem razão. (Pigarro). Eu tenho andado muito… Hã…
– Eufórico. Hebefrênico. Fagueiro. Cheio de iniciativa.
– Issssooo, meu grande atend… Quer dizer. Hm. Exatamente.
– E isso afastou todos os amigos.
– Ahááá, na mosc… hm. Sim, certo. Os amigos sumiram.
– Conte-me como andava sua conduta, até isso acontecer. E antes de mais nada, deixe-me só fazer um alerta.
– Sim?
– Menos.
– Ah, certo. Bem, nas últimas semanas – segundo os poucos amigos que tinham restado até então – minhas atitudes passaram dos limites. Minha sociabilidade ficou comprometida.
– Prossiga.
– Eu chegava às segundas-feiras, no escritório, e dizia bem alto: “Bom dia e boa semana a todos! Não esqueçamos o otimismo, a perseverança, o companheirismo – e tenhamos em mente os valores e a missão dessa empresa!” Todos me olhavam como se eu fosse um aidético com hanseníase. Uma vez cheguei a ler e decorar trechos inteirinhos do Inteligência Emocional e do Quem Mexeu no Meu Queijo? para poder citá-los de cabeça na reunião semanal. Quando terminei a citação, olhei ao redor e reparei que a sala de reuniões estava vazia. Papéis largados, cadeiras viradas. Só tinha sobrado a copeira, que me olhava com os olhos esbugalhados e em pânico, segurando uma bandeja vazia.
– Sei. E em casa?
– Ah, eu acordava antes de todo mundo. Fazia questão de preparar sozinho o café da manhã. Sabe aqueles comerciais de margarina, onde a família inteira se senta à mesa logo no começo do dia, sorridente, sem olhos inchados, os rostos reluzentes? Pois é – mas só eu era assim. Minha mulher acordava e tomava 10 miligramas de Prozac junto com o café, me olhando meio passada. Durante meus discursos edificantes e cheios de metáforas sobre como encarar o dia, às vezes um ou outro filho saía correndo da mesa para vomitar, no banheiro. Ou pior ainda: saía da mesa e voltava à cama, para dormir.
– Prossiga.
– Aos poucos o isolamento começou. No escritório, quando o pessoal saía depois do expediente para tomar uns drinques e eu aparecia no bar pedindo uma Coca Diet, diziam cochichando: “Começou a unhappy hour”. A diretoria chegou a pedir que eu trabalhasse em casa – e ainda dobraria meu salário! Em casa, então, nem conto. Um dia, enquanto minha mulher tomava o Prozac diário, comecei a explicar como a depressão era paralisante, e insisti que ela devia reaver a vontade de lutar, abrir-se para a vida. Até li em voz alta algumas frases do Gotas de Sabedoria. Foi o bastante. Ela pegou as crianças e rumou para a casa da mãe.
– Sei. E desde então o senhor não falou mais com ninguém?
– Não. Se eu ligo e algum amigo atende, ao reconhecer minha voz ele é quem diz “Desculpe, foi engano!” e desliga. Sabe que você foi o primeiro a querer falar comigo no telefone, hoje? A primeira voz amiga, que…
– Menos, senhor, menos. Escute. Não se entregue. Seu caso tem solução. Entre outras coisas, o senhor precisa evitar a todo custo as más influências. Esse tipo de leitura, por exemplo.
– Que tipo?
– Leitura motivacional. Isso só vai motivar uma coisa: que todo mundo continue longe do senhor. Passe a Baudelaire. Camus. Augusto dos Anjos. Ouça algumas óperas, principalmente Leoncavallo. Pare também com essa Coquinha Diet e comece a tomar gin-tônica. Depois fique só com o gin. E assim vai. Está anotando?
– Sim, sim. Mas isso não vai me transformar num…
– Num o quê? Num o quê? Escuta, quem é o atendente aqui?
– Certo, certo.
– Então vá por mim. Faça isso e recupere os amigos. Ou pelo menos um mínimo de circunspecção comportamental.
– Puxa. (Pausa) Nem sei o que dizer. Agora eu entendo. Sim, compreendi. Você trouxe luz à minha solidão. Abriu meus olhos. Me fez…
– Senhor?
– Pois não.
– Menos.

Ao Mirante, Nelson!

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