30.5.05

MOCCA CHOCOLATA YAYA (Segundo Ato)

Na biblioteca do solar dos Soares Silva, Alexandre está entediado numa poltrona. Veste roupão e chinelos de couro. Na sua frente, em outra poltrona, Voz na Minha Cabeça lê "O Declínio da Civilização Ocidental".

Alexandre levanta e começa a andar pela biblioteca pensativamente. De súbito vê um busto de Cícero na estante e não consegue conter um esgar de desgosto.


Alexandre - Com solenidade declaro que a Antigüidade toda me entedia. Chego a pensar que foi de propósito.

Vnmc - Não, não, que é isso.

Alexandre - Ah, foi sim. Os filósofos pré-socráticos inventavam toda semana um novo elemento do qual o universo supostamente é feito (saliva, pedregulhos, muco, resina de pinheiro) só pra me fazer dormir. Tenho certeza. Cícero fazia discursos de quatro horas sobre o uso de tacapes nas Guerras, sei lá eu, da Panônia, só pra me entediar. No meio do discurso ele se interrompia (até posso vê-lo) pra piscar pra os senadores, que riam dizendo entre si, todos com a cara do Charles Laughton, “Ré ré ré, está chato mesmo. O Alexandre vai dormir". Inventaram as declinações por pura maldade... (campainha toca) Quem bate?

Vnmc – Ninguém bate, foi a campainha. E quem pergunta “quem bate” na vida real, meu Deus?

Alexandre – Sim, sim, a campainha. Tenho andado distraído por causa de informações chocantes que li numa revista científica. Por exemplo, você sabia que é possível quebrar o pinto? Ah, não atenda.

Vnmc – Tenho que atender, para não continuar ouvindo o seu monólogo.

Abre a porta. Mulher da Seicho-no-Iê aparece com folhetos na mão.

Mdsni – Bom dia. Será que vocês têm cinco minutos?

Vnmc – Ele tem, ele tem. Entra...

Alexandre – Eu achava que tinha, mas subitamente me sinto como se estivesse muito ocupado. Tarefas esquecidas oprimem minha mente. (aperta a cabeça, dando sinais de grande dor) Tenho que assistir a RAI hoje para aprender italiano. Oh, meu Deus...

Mdsni – Eu realmente não queria atrapalhar, só queria mostrar estes livrinhos pra vocês...

Alexandre (interrompendo) – São da Antigüidade?

Mdsni – Não.

Alexandre – Discursos de Cícero?

Mdsni – Não. Eu só queria mostrar este livrinho, “Luz da Vida, Esperança no Coração”, que pode passar muita coisa de positiva para vocês...

Alexandre – Uma vez me passaram uma coisa positiva, minha cara, e demorei dois anos para me curar. Mas me deixe ver. (pega o livrinho) Ugly-looking little bugger. Tem certeza que não é um discurso de Cícero? Ah, sabe, eu leria, mas prometi a mim mesmo que nunca mais leria livros impressos em páginas verde muco.

Vnmc (para Mdsni) – Pode deixar, eu compro. Vai ser um prazer ler o livro em voz alta pra ele nas longas noites de inverno.

Mdsni – Obrigada, mas é de graça. Posso perguntar se vocês têm alguma crença?

Alexandre – Ah, muitas. Nossa, como eu sou crédulo.

Vnmc – É sim. O que quer que você diga, ele acredita. Experimenta.

Mdsni – O senhor acredita na Vida?

Alexandre – Se eu acredito na Vida? Eu adoro a Vida! Sou fanático pela Vida! É melhor do que Buffy! Todos os dias puxo aquela poltrona ali para aquela janela, está vendo?, e fico vendo a Vida lá embaixo. Vem ver, vem ver. (arrasta mulher para a janela)

Mdsni – É bonito. Não tem muito acontecendo, né?

Alexandre – É verdade, a Vida é um pouco monótona. Sem contar que as pessoas no ponto de ônibus são feias. Putz, olha a gordinha.

Mdsni – Mas o que eu quero dizer é, vocês acreditam na Energia Vital? Na força do Pensamento Positivo?

Alexandre (subitamente absorto, para Vnmc, ignorando Mdsni) – Mas como eu ia dizendo, é terrível, dá pra quebrar o pinto como se fosse um osso.

Vnmc – Podemos tentar.

Alexandre (para Mdsni) – A senhora sabia que é possível quebrar o pinto como se fosse um osso? Se estiver duro, é claro. Sabe quando a mulher está por cima e ela se joga pra trás? Ah, minha boa mulher, trate bem o pinto do seu marido, é o conselho que lhe dou. Uma vez que um homem quebra o pinto, perde toda a confiança. Para o resto da vida ele vai fazer sexo bem devagarinho, eternamente com medo de ouvir um estalo.

Mdsni – Eu sou viúva.

Alexandre – Claro que é, minha boa mulher, claro que é. Droga, chegou a hora de ligar na RAI. Será terrívelmente indelicado se eu ligar a tevê na RAI? Mas é sempre indelicado ligar a tevê na RAI.

Vnmc – Diz pra ela a expressão mais linda da língua italiana.

Alexandre (ligando a tevê) – Cinque e quarantacinque. Não é lindo? Cinque e quarantacinque. É melhor do que toda a Divina Comédia. Olha, um programa de auditório.

Mdsni – Acho que tenho que ir indo.

Alexandre – Não, não, eu mudo. Eu ponho na HBO e a gente vê um documentário com gente feia fazendo sexo. Mas eu ia dizendo: cinque e quarantacinque é não só a expressão mais linda da língua italiana, mas também a mais linda de todas as línguas. Ah, da próxima vez que for à Itália, vou todos os dias ficar parado no meio da Piazza di Spagna esperando que alguém me pergunte as horas.

Vnmc – Muito chic. Mas e se forem sete da noite?

Alexandre – Direi que são cinque e quarantacinque. Sempre direi que são cinque e quarantacinque. (olha a tevê) Ei, esses são mais feios do que de costume.

Mdsni – Tenho mesmo que...

Vnmc pega um busto de Papa Doc Duvalier em cima da lareira e, depois de alguma hesitação, esmaga cabeça de Mdsni.

(…)

todos os três atos em em Alexandre Soares Silva

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