DO LADO DE FORA PARA VOLTAR
Faça um exercício: acorde como se estivesse ido embora. Contorne a casa pelas janelas de fora. Não denuncie seus movimentos, não produza nenhum barulho, sequer o da respiração. Passe pela vidraça do quarto do filho e os veja brincando, mexendo com seus bonecos, conversando com seus espíritos, naquela alegria de alma que as crianças exercitam naturalmente.
Fica com vontade de rir dos diálogos entre o filho e seus guerreiros imaginários. Uma ternura de cócegas na barriga. Percebe que ele usa suas expressões. As pausas parecidas. O franzir dos lábios idêntico. Pensa em dar um susto para abraçá-lo em seguida, mas não pode dizer que está ali. Não pode interrompê-lo. Não pode gritar ou expressar o seu amor.
É um passeio calado como o de um fantasma. Isso vai irritando. Você não suporta ver sem ser visto. Entende que ver sempre foi uma retribuição. Atravesse a casa pelo lado externo, como a vitrine de uma loja. A loja é a sua intimidade. Está fechada, tal domingo. Os mortos não podem comprar seus pertences de volta. Todo dia para quem partiu é um domingo, sem expediente.
Conduza a lembrança para o outro aposento. E enxerga sua filha chorando devagar. Talvez seja por você ou pela lacuna de uma cadeira na mesa. Ela sentava no almoço na sua frente. Observa que o livro que comprou está ao lado dela, aberto no travesseiro. Ela está lendo finalmente. Quer comentar o enredo, e recorda que não pode falar ou amansar as costas dela com seus dedos tortos. Ela chorará até descer na parada do soluço. Ou do grito.
(…)
.:. Fabricio Carpinejar .:.
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