21.3.06

NO SUBÚRBIO - PARTE I

Na calçada estavam reunidos em três. Dois deles, recentemente banhados nas águas turvas do Lethe, tiveram forças de nadar contra a correnteza, enganar o barqueiro e, amoitados, esperar a chegada da manhã. Manhã que os encontrou numa unidade de tratamento intensivo qualquer. No mais velho deles, o peito cicatrizado já parara de doer, safenas e mamárias irrigando satisfatoriamente um velho músculo. Meu pai era este. O que continuou pulsando em seu peito de estivador foi sem dúvida a melhor parte de seu coração. O humor não o abandonou, pelo contrário, a ironia cerebral ganhou uma ternura física como companheira. Após sair do hospital, aquele homem acostumado a superfícies ásperas, trabalhador de madeira e lâminas, deteve-se em certa ocasião acariciando meus cabelos por um longo tempo. Aceitei o afago com aquela atitude contida de ornitólogo que teme que o menor movimento destrua um trabalho de observação longo e laborioso. Confessou-me seu amor e admiração. Escutei solenemente meus uirapurus. Mas divago.

O outro mergulhador chamava-se Horácio. Este, sobrevivente de um derrame cerebral grave. De homem ativo e ágil, tornou-se lento e contemplativo. “Parece que eles abriram minha cabeça aqui, não foi? O que eles usaram?” “Uma serra, um serrote, uma coisa assim”, responde o terceiro homem, um açougueiro de aproximadamente quarenta anos. Autoridade em assuntos de abrir e retalhar. “E pelo resultado, acho que o serrote estava cego”, emenda o ex-marceneiro. Horácio sorri seu sorriso fartamente desdentado, infantil. Ao seu aspecto asseado e pueril lhe caia muito bem o talco posto em seu peito por uma mulher, senão amorosa, ao menos caridosa.

Certos convalescentes parecem mesmo passarinhos caídos do ninho. Exceto que, como meu pai, Horácio estava de muito bom humor sentado em uma cadeira de balanço na calçada. Eu prefiro tamboretes pequenos para prosear. Mas eu sou o quarto homem e cheguei quando o grupo já estava composto. O terceiro era o tal açougueiro recém estabelecido na vizinhança. Mas já com desafetos. Apesar de simpático, queixava-se de uma denúncia anônima que haviam feito acerca das condições sanitárias de seu comércio. Nada se comprovou; estava feliz. “Tem gente que não pode ver o progresso do outro. A vigilância sanitária veio aqui. Disseram que meu estabelecimento comercial estava ‘o dez’ e foram embora.” Alguém sugere algo sobre propina, mas resolve não levar a brincadeira adiante: alvo fácil demais. Ao invés disso, passamos a especular que a única pessoa quase sem coração, capaz de uma sacanagem desse tipo só poderia ser meu pai. Este ouve o achincalhe com aquela certeza quieta de quem, no campo da pilhéria, sabe se defender bem. "Havendo boa vontade do comerciante, estou pronto a me calar. Qualquer contra-filé me silencia. Mas a carne tem de ser de outro açougue”.

Não prosseguem no assunto. Preferem discutir minha condição de homem descasado. O açougueiro aprova o celibato, lembra-me seu irmão da marinha mercante e suas três amantes em diferentes portos brasileiros. Um clássico da poligamia a ser seguido. Os dois mergulhadores discordam e me lembram que já não sou uma criança. “Somente quem passa pelo que a gente passou é que sabe o valor de uma família e de uma mulher”, filosofa meu pai com seu pragmatismo emocionado. “Eu tenho outra mulher no Ibura. Não veio me ver até hoje. Nem sei se sabe da minha doença”. “E sua mulher sabe da outra, Horácio?”, pergunto. “Ave Maria, não!” “Nesse caso, como essa vizinhança não pode ver o progresso de um cristão, talvez fosse melhor você não falar muito sobre esse assunto”. Todos aprovam a sugestão, embora Horácio estivesse mais propenso a entrar em detalhes.

Segunda Mão

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