Chaves
“Sabe por que não dá mais pra ficar com você? Porque você nunca usou a chave que eu te dei. Você sempre chega, interfona e, mesmo que eu esteja avisada pelo interfone, você ainda assim toca a campainha. Toda vez. E nunca nem pensou em me surpreender um dia, me esperar em casa sem avisar, passar aqui e deixar uma lembrancinha besta dessas que gente que gosta deixa. Aí, quando eu uso a chave que você me deu para entrar no teu apartamento sem bater, me sinto culpada. E não adianta dizer que é porque lá não tem porteiro. A verdade é que eu quero entrar na sua casa e na sua vida, e você não quer entrar na minha. E trata de deixar a chave em cima da mesa quando for embora”, ela disse, batendo a porta do banheiro.
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“Um mês, e ela ainda não me deu a chave do apartamento dela. Um mês. Quando você dá a chave do seu apartamento pra namorada, o único jeito de retribuir é que ela te dê a chave do apartamento dela, caceta. É aquela famosa história do ‘eu te amo’: quem diz eu te amo não quer ouvir ‘eu também’, e muito menos, sei lá, ‘ah, que bom’. Tem presentes, declarações, que só se pode retribuir de um jeito, um único jeito, e quando a retribuição não vem, isso quer dizer alguma coisa, alguma coisa muito mais séria do que o gesto original queria dizer: se dar uma chave é um murmúrio, não retribuir com uma chave é um grito. E é por isso que hoje à noite eu vou pedir minha chave de volta, e ela que se foda”, ele pensou, enquanto se barbeava.
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Na gaveta de baixo da mesinha de cabeceira, por sob cartões postais em que os amigos e parentes se gabavam de viagens que ele mesmo nunca faria, guardava chaves em desuso, de casas, gavetas, carros, cofres, o detrito de duas décadas de portas que por um motivo ou outro se haviam fechado definitivamente para ele, e, em meio às lembranças, a chave pequenina, dourada, que um dia recebera embrulhada para presente pendurada em um chaveiro enfeitado por um personagem de desenho animado que, segundo a responsável pelo presente, era “a cara dele”. Enquanto acrescentava uma nova chave à coleção de portas que não mais se abririam, ele tilintou o chaveiro que ainda levava no bolso passados mais de 10 anos, e pela primeira vez pensou em jogar no lixo a desbotada efígie de Hardy Har-Har.
Filthy McNasty
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