18.12.08

Quase vegetariano

De repente o pedaço de carne na minha boca fica com gosto de couve-flor, de repente. Como o ex-operário da fábrica de cerveja que tem o nariz impregnado de cevada e que não encontra prazer na cerveja, mesmo anos depois de não trabalhar mais lá. Tudo começa a ter gosto de couve-flor e a minha vida escorre como um rio diante dos meus olhos.

Às quartas e sábados saía correndo da escola e ia direto pra Rua do Muro, onde tinha a feira, antes que estação fosse construída. A mãe me esperava com as sacolas, que ela ia enchendo com os produtos encalhados – xepa, mesmo – que os feirantes vendiam por poucas liras, pra não ter que trocar pela dignidade das famílias pobres como a nossa. 20 liras. Era quanto custava uma sacola de couve-flor. Voltávamos pra casa e a mãe cozinhava sobre a lenha catada nos dias de sol, amontoada na cabana que o pai construiu antes de desaparecer. Como havia fartura de couve-flor e pouca coisa mais, comíamos couve-flor todos os dias. Couve-flor tem gosto de lira velha. 20 liras. Eu era garoto mas entendia tudo. Com a cabeça enfiada no prato, sentia o olhar da mãe e podia ouvir seu coração apertado, eu entendia tudo. Comia de limpar o prato e ela suspirava aliviada. Almoçava e saía pra catar lenha e vender nas ruas do centro. A mãe usava o dinheiro pra ir à feira.

Nas férias de verão trabalhava na poda das videiras e, depois, na colheita da uva. Aquele dinheiro era importante e a mãe rezava pra que a safra não atrasasse e eu pudesse voltar pra escola em setembro, no início do ano escolástico. Durante a colheita os outros levavam pão pra comer com uva. Como não tínhamos dinheiro pra farinha, levava apenas couve-flor e trocava com um pouco de pão, eu trocava. Couve-flor alimenta os calos das mãos. Pão com uva sob o sol é a lembrança bela e dura das minhas férias.

Quando deixei a escola pra ir trabalhar na construção da estrada de ferro, levava a couve-flor que a mãe cozinhava às cinco da manhã. Comia longe dos outros operários, que o cheiro de couve-flor é desagradável e denuncia os mais miseráveis. Couve-flor fede como suor, fede.

Íamos a poucas festas. Uns poucos casamentos e a festa da padroeira. Pobre tem pouco a festejar, mas quando casei teve festa. Pouca, mas teve. E não teve couve-flor, que comida assim, pobre, come-se escondido e não se oferece a ninguém. Massa, peixe, pão, vinho. Couve-flor, nunca. Couve-flor é a vergonha da pobreza.

Cresci meus filhos com calos e resignação. O salário mal dá pras despesas e não podemos nos permitir os supérfluos da modernidade, mão não posso privar os garotos de desejarem ser iguais aos demais, não posso. O dinheiro dos serviços ocasionais e da campanha da uva, nas férias, fica separado pra ser usado com falsa naturalidade em algumas poucas, das muitas vontades deles. No próximo verão levo os meninos pra ajudar na uva e eles começam a ganhar o próprio dinheiro. Até lá, carne só muito de vez em quando, que pobre tem que suportar privações e eu sou um que suporta. E tem o primo dela, feirante, que trás sempre um saco de couve-flor. Mas quando ela leva os meninos pra velha benzer, uma vez por ano, antes da festa da padroeira, como carne. É por isso que esse pedaço deve ser mastigado devagar, fingindo não ter o gosto da couve-flor que os meninos não comem de jeito nenhum, e que está impregnado no meu nariz pra sempre. Nem enfio a cabeça no prato pra comer depressa e me livrar logo, como fiz a vida inteira, não. Hoje como devagar, pensando no primo dela que só aparece quando estou trabalhando; na lira que nem existe mais: vinte liras equivalem a menos de um centavo de euro (aquela moedinha de cobre azinhavrado), nem existe mais, nem existe; na estrada de ferro que ajudei a construir e que hoje leva a gente embora daqui; no almoço de pão com uva durante a colheita; na lenha catada e vendida por poucas liras pra quem nem precisava dela; na dignidade que restou.

Tento lembrar dos momentos alegres e esquecer a vida dura que sempre tive, tento lembrar. Esquecer da carne sem gosto de carne; do peso das sacolas da feira; do olhar desviado das pessoas pra quem vendia a lenha; do cheiro de couve-flor em baixo da lona, onde almoçávamos em dias de chuva, na construção da estrada de ferro; das poucas festas; dos calos nas mãos irremediavelmente grossas; do dinheiro sempre pouco; da frase dela encerrando a discussão essa manhã, pouco antes que saísse com os meninos pra pegar o trem das sete e meia: “você nem imagina os sacrifícios que tive que fazer pra não faltar nunca a couve-flor que você tanto gosta.”

Carta da Itália

2 comentários:

blabla disse...

Henrique...
(um momento de suspiro)
...
Fiquei emocionada.
Também tive momentos difíceis, mas acho que jamais, quando criança, tive essa benevolente maturidade.
Belas lembranças. As mães são as mais valentes mulheres do mundo.
Em homenagem a você e a sua adorável mãe, no natal vou levar para a casa da Mama couve-flor gratinada.
Um abraço, muito mais luz pra você.

Allan Robert P. J. disse...

Henrique,

Me sinto honrado. :)

Grazie.