Cláudio Caetano
O Cláudio Caetano morreu. Encontraram seu corpo no centro, encostado na parede de uma grande loja de departamentos. Jazia sobre uma cama de papelão, numa piscina de sangue.
Ele tinha 39 anos, era negro, dois dentes na boca e nenhuma ilusão. Vítima da vida, Cláudio também fazia suas vítimas na profissão, que cultivava cuidadosamente nas noites de Porto Alegre. Ele furtava rádio de carros e, às vezes, arrombava residências. Mas, quando o conheci, chegou como vítima. Apanhara da polícia. O saldo era o pulso quebrado, umas costelas fraturadas, um olho vazado. E o cheiro, meu Deus!... Cheiro que penetrava no ambiente, violava nosso olfato. Mas a figura me comovia. Não sei se era o rosto, o desespero dos olhos, a vocalização singular das palavras. Falava aos arrancos, como um animal acuado. Ele tinha medo, medo que vinha da culpa, da desesperança. Era um ser que inspirava horror. Tinha cara de mau. Os olhos sempre injetados, mas como brilhavam... Era a miséria em toda a sua glória. A miséria sem inocência, miséria que não inspirava compaixão. Acolhia a repulsa. A miséria e todos os seus vícios, presentes e futuros. Que belo quadro daria aquele rosto...
Só que a vida de Cláudio Caetano era um belo filme de terror. O mais aterrador. O terror cotidiano, o terror comum de uma história sem originalidade, aquela que acontece o tempo todo nas cercanias da cidade, nos cinturões da fome, o terror sem inspiração.
Aos nove anos, cansado de apanhar da mãe e do padrasto, Cláudio Caetano tentou se matar. Entrou no Guaíba na certeza de morrer afogado, já que não sabia nadar. Mas, ao sabor da fome, juntou-se o gosto do medo e seu corpo começou a nadar sozinho. Então matou sua infância, o padrasto e foi para a Febem.
Cláudio Caetano não tinha nem sombra de ternura. Só que algo suavizava naquele rosto embrutecido quando falava da Janete, a mulata esquálida que costumava espancar nas tardes de domingo e que já lhe dera quatro filhos, um morto. Ela tinha treze anos quando deixou de passar fome em casa para dividir a fome com o Cláudio Caetano. Naquele tempo, ele estava quase bem de vida, proprietário de um barraco na Vila Cachorro Sentado.
Os filhos... ele não sabia dizer a idade. Confundia seus nomes, suas realidades. Na verdade, os filhos o aborreciam. Eram corpos que necessitavam coisas que jamais poderia suprir. Coisas materiais, como alimento, roupas, escola, brinquedos... Coisas espirituais, como amor, amizade, afeto, compaixão... Coisas que nunca tivera e, sabia,... nunca teria. Mas ser humano que era conhecia sua existência, por puro instinto, pela própria necessidade. Melhor não soubesse de nada, melhor seria... E tinha consciência do fato.
A última vez em que vi o Cláudio Caetano com vida foi quando ele foi levado a fazer o reconhecimento dos policiais que o agrediram. Na ocasião, ele demonstrou coragem. Tinha um medo insano da polícia. Mas desta vez não era o medo do homem culpado e sim o medoda vítima. A perda do olho foi tão sentida que venceu a si mesmo e foi. Só que mostraram fotografias antigas. Impossível reconhecer os policiais bandidos. O último resquício de esperança no sistema se esvaía. Foi a partir daí que o Cláudio Caetano tomou novos rumos na profissão. Passou dos pequenos furtos para os roubos e os latrocínios.
Aquela sova - não que fosse a primeira - deu sede de sangue. Sangue em que se banhou inteiro antes de partir.
na morgue do Angel 7000
28.3.03
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