O mundo pode dar as voltas que queira, bilhetes premiados podem cair sobre minha mesa, posso me tornar chefe dos chefes. Mas vou continuar sempre firme no propósito de me manter um pequeno burguês fiel e fascinado por sua condição e pelas coisas belas da pequena burguesia. Se eu for para cima ou para baixo nessa pirâmide, vou continuar ou aficionado ou saudoso desse belo mundo. Posso gastar rios de tintas (tem um advogado famoso no Rio que sempre usa essa cafonice – então eu também posso) para explicar os meandros de meu fascínio. Vou fazer isso sistematicamente até ter vasculhado os quatro cantos desse encanto. Mas hoje vou falar de uma simplicidade gastronômica que virou uma referência do meu establishment culinário. Esse ente é o misto quente.
Pois é. Elegi o misto quente como o ente pequeno burguês dos sanduíches nacionais. Não vou aqui partir para suas variações e irmãos estrangeiros, onde se muda o pão, os queijos se sofisticam e se boloram, os presuntos mudam de coloração e teor de gordura. Vou ficar só no misto quente tupiniquim, na iguaria que se encontra em qualquer boa padaria ou casa de lanches de Boa Vista a Santana do Livramento. E ele é uma referência de simplicidade por conta disso: vive ali no meio: não é encontrado nas sanduicherias sofisticadíssimas – essas que você só encontra no grand monde paulistano, onde variações sobre esse tema acabam distorcendo a imagem tradicional do misto quente – e também não é encontrado nos botecos descamisados – onde é substituído pela mortadela ou por embutidos de coloração duvidosa e qualidade sofrível.
E eu me tornei adepto da iguaria na minha idade mais tenra. Fez parte, ao lado do Nescau gelado, da minha infância, adolescência e idade adulta. Aos 29 suprimi o Nescau dessa dieta sem imaginação, substituindo o acompanhamento líquido ou por sucos variados ou pela fantástica fanta laranja. Mas o misto ficou ao meu lado e daqui só sai quando o tal criador me der o bilhete azul (Taurinos do terceiro decanato são assim: podem comer a mesma coisa anos a fio, de manhã de tarde e de noite, sem qualquer sensação de fastio ou repulsa.)
O verdadeiro misto quente vem em pão de forma branco ou pão francês. Trás queijo prato de boa qualidade e presunto cozido (daquele da propaganda do “tá querendo me enganá...”). Variações de material não são admitidas na minha literatura (hah: taurinos do terceiro decanato são inflexíveis). Nada de pão integral ou árabe (parta para um sanduba natural ou um beirute e não venha tirar onda de comedor de misto quente). Nada de queijo minas, palmira, camembert ou muzzarela. Passe longe com peito de peru ou fiambres sem cor e personalidade.
Misto quente de verdade é assim. Muito queijo derretido na chapa, envolto em grossas fatias rosas de presunto, tudo acomodado dentro do pão de escolha (atente para as limitações dessa escolha e não inove – forma ou francês) e prensado até o momento certo de partir para a glote.
A Coluna do Chefe - epinion
3.3.03
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