30.3.03

Santinhos

Na fila, o homem chegou e me abraçou forte, não querendo me largar. Eu dava tapinhas nas suas costas, evitando parecer selvagem com um cara que só podia ser louco, a me perguntar: “Tem dinheiro aí?”. “Tenho uns trocados, sim”, falei sacando minha carteira com uma foto que ele, me soltando, passou a admirar: “Sou eu este daqui”, ele disse a sorrir e a babar como quando um bebê reconhece a atenção franca de um desconhecido. A foto era minha, confesso, na Primeira Comunhão. Sempre achei esclarecedora do meu jeito vida afora aquela expressão beatífica que o seu Karol, o fotógrafo judeu, me ensinara a compor. E o louco de cabeça raspada e cheiro de mijo se achava ali. Quando lhe ofereci os trocados ele não quis. Viu o sinal aberto e partiu.

Albergue

Quantas vezes corri esbaforido ao cinema para pegar em tempo uma sessão. Nem sempre por uma premência artística. Apenas para me saciar no escuro onde ninguém sabe de mim. Longe de cadeiras ocupadas, adormeço em muitos filmes para só no fim despertar. Não bem um sono, de fato, como na cama onde me atiro com avidez de apagar. Fico olhando as imagens, isso sim, para pensar no que elas não podem me dar. Assim vejo outro filme, um sempre ausente da tela mas sempre vivo no quase cochilo do tato, aqui, no suor da minha mão. Ao voltar ao espetáculo percebo que um novo personagem apareceu e que a música de Bernard Herrmann está custando a chegar com o apogeu – mas, quando ela vem, vejo estar sequioso por mais uma sessão.

Leite & fel

Não havia destino anterior àquela rocha à beira do Guaíba. Foi nela que sentei. As águas cintilavam. Não havia nada que pudesse lembrar. Me fiz de profeta, alguma coisa assim: pernas dobradas, joelhos nas pontas laterais, sobre eles os dedos fazendo o tal círculo (em outras ocasiões obsceno), sei lá para quê. Assim fiquei, nessa pachorra um tanto encenada. Para quem?, pra ninguém, não se via viva alma por perto. De algo eu lembrava: fugira um dia antes. Só não sabia de onde. Recordava que na escapada uns galhos me feriram a testa e que num ponto da caminhada abriu-se o rio, essa rocha. Desabotoei a camisa, vi ser eu uma mulher. Na bolsa presa ao ventre, lembrando um canguru, um bebê sofria espasmos. Botei sua boca no bico do meu seio. E assim pude morrer.

João Gilberto Noll na Revista Eletrônica FRAUDE F for Fake

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