27.4.03

No teto do quarto do filho, Orestes mandou pintar um surpreendente Cristo agonizante, banhado em luz solar e crucificado em rosas renoirianas. As rosas pareciam tão plenas de luz, tão reais, tão desabrochadas e frágeis, que as visitas olhavam disfarçadamente para o chão, buscando encontrar algumas pétalas tombadas. Orestes sorria, inflado de orgulho, ao contemplar as inesperadas reações que o Cristo das Rosas causava nas pessoas. E sempre repetia ao seu único herdeiro: “Orgulha-te, Orfeu! Tens o próprio Filho de Deus a vigiar-te o sono e a abençoar-te os sonhos! Qual outra criança, nesta cidade, neste país, tem o privilégio de adormecer e despertar debaixo de uma obra de arte assim... divina?”
Certa noite, após o jantar, o menino comentou: “Na escola, papaizinho, chamam-me de Pequeno Belzebu, chamam-me de Cabeça de Cavalo... Também dizem que o meu cérebro vai crescer sem parar e sair, aos pedaços, pelos meus ouvidos e pelos furos do nariz!”
Orestes não tirou os olhos do cálice de sirop de grenadine, quando murmurou: “Somos o que somos, e não devemos dar importância aos que nos olham com espanto ou desdém. Chegará o dia, escuta-me, menino, em que seremos nós a rir de todos esses ignorantes, desse que hoje se divertem à nossa custa. Nesta vida, Orfeu, nada como um dia após outro... para que a Implacável Justiça de Deus se manifeste!”
No inverno daquele mesmo ano, um raio explodiu no interior da capela do Colégio Marista. Morreram três professores e oito alunos. Entre os feridos, vinte garotos e o bedel, estava Orfeu. Sobrevivera, mas suas feições ficaram irreconhecíveis.
Assim que voltou do hospital, Orestes apanhou uma bacia, aqueceu boa quantidade de alcatrão e, com a mistura negra e viscosa, pintou todo o teto do quarto do filho. Em minutos, fez desaparecer completamente o magnífico Cristo crucificado em rosas. A revolta que aquele homem sentia, profunda, corrosiva, não dava lugar a qualquer forma de arrependimento, muito menos ao mais débil receio de ser castigado por Deus. Daquele dia em diante, Orestes, o pai de Orfeu, tornou-se o mais descrente entre os descrentes.
...
Faz noventa e cinco anos que tudo isso aconteceu. Noventa e cinco anos... quase 1 século! A casa onde viveram Orestes e seu filho há muito já foi derrubada. No local, existe agora um bar ordinário, com paredes pintadas a óleo, num verde muito escuro, quase negro. Uma escadinha estreita leva ao segundo pavimento, que serve de depósito. Lá, entre engradados de cerveja, mesas quebradas, imprestáveis cadeiras de plástico e pilhas de jornais velhos, uma vez por ano, sem que ninguém veja ou saiba, infalivelmente, repito, uma vez por ano... chovem rosas; perfumadas rosas renoirianas.

conto do Caderno Mágico

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