26.5.03

Videotexto (Post XIII)

A Loba

(...)

A Loba era completamente viciada em videotexto, me contou que chegava a passar dez horas por dia no micro e que a maior parte dos amigos que ela tinha eram frutos do sistema de bate-papo. A Grazielly (Loba) era uma garota engraçada, falava pelos cotovelos e era uma dessas raras figuras que não tem medo de gente. Não fazia tipo, não era mascarada e não ficava cheia de dedos com as pessoas. Era simpática, verdadeira e real.

(...)

Daquela festa guardei duas fortes lembranças: a da Grazi tomando tequila e me perguntando que lugar era aquele que brotava homem bonito e a outra de nós duas sentadas na mureta do Tombaqui fumando cigarro de canela só para fazer tipo. Entre uma bobagem e outra, conversamos sobre a importância de sonhar, planejar o futuro...

- Fodam-se os sonhos. Meu futuro é daqui a uma fração de segundos, não posso perder tempo sonhando.
- Você está bêbada.
- Repito isto a hora que você quiser.
- Pois eu quero muitas coisas da vida. Não quero deixar de sonhar nunca e quero todo o tempo do mundo para trabalhar nos meus projetos. Quero ser uma grande jornalista, a melhor jornalista! Quero me apaixonar por todos estes garotos lindos que você me apresentou hoje e depois de ter beijado na boca até pegar sapinho, quero casar, ter filhos e continuar sendo a melhor jornalista. A melhor jornalista com montes de filhos!
- A melhor jornalista da revista Pais e Filhos!
- Não, não engraçadinha... não quero mídia impressa, quero trabalhar na TV.
- Show da Xuxa?
- Porra, não me sacaneia. Você tira um sarro, mas aposto que você faz planos para sua vida. Você trabalha feito uma louca.
- Na Teletel? Claro! Chove dinheiro naquela droga de empresa. Mas, não sei não... Tem alguma coisa estranha naquele lugar.
- Como assim?
- Ainda não sei. Lá todos me passam a impressão de que vivem morrendo de medo.
- Medo de quê?
- Eu não sei. Pode ser só encucação, mas é estranho.
- Está pensando em mudar de emprego?
- Não sei... Quem sabe eu não compro este lugar pra mim? - Disse sorrindo e abrindo os braços para rua com o intuito de mudar o rumo da conversa.
- O Tombaqui? Ótimo! Se isto acontecer eu quero ser sua amiga pra sempre. Não, pra sempre não. Pra sempre é muito tempo. Só até te internarem no A.A.

Naquela noite, eu nunca poderia imaginar que eu estava certa: o futuro estava realmente muito próximo, tão próximo que deve ter rido e chorado com a nossa conversa. Riu das surpresas que estavam por vir, riu da nossa imaturidade e chorou pelos sonhos da Grazi.


Videotexto (Post XIV)

Procura-se

Minha amizade com a Grazi durou pouco. Em menos de dois meses minha vida mudou da água para o vinho. Muitos dos meus amigos acharam que eu tinha surtado; muitos me deram conselhos e acharam que sabiam o que era melhor pra mim, mas a Grazi foi a única que não perdeu tempo me dando sermões, ela simplesmente me mandou à merda e acabou com a nossa amizade.
O Tombaqui estava fechado e eu estava dormindo, ela tocou a campainha. Só consegui levantar depois do quinto e insistente toque, abri a porta fugindo da luz do sol e vi o dedo da Grazielly se aproximando do meu nariz delicadamente. Não, ela não era tão brava. Mas ficou quando percebeu que as minhas decisões não seriam passageiras.
- Olha aqui, eu sei que eu não tenho nada a ver com a sua vida, que acabei de te conhecer, que você não quer mais voltar pra casa dos seus pais e que está toda apaixonada pelo Robin mas, Ale, olha a sua idade! Olha onde você está morando, olha a vida que você está levando, olha pra você! E não adianta fazer essa cara porque eu já sei o que você pensa sobre tudo isso, sei as suas razões e sei que você vai levar esta história até o fim porque você é orgulhosa demais pra voltar atrás quando faz uma merda. Eu só vim aqui porque eu não agüentava mais guardar isto tudo dentro de mim. Vim pra dizer que eu preferia não ter te conhecido porque você, em um ou dois meses, foi uma das melhores amigas que eu tive e é muito ruim ver que você está cega, completamente cega...
- Eu tô feliz, Grazi.
Ela pegou a bolsa que havia deixado em cima de uma das mesinhas, virou as costas e foi embora sem dizer até logo. No dia seguinte à noite ela estava de volta. Pediu uma coca-cola, cumprimentou quem estava na cozinha, olhamos uma para outra e...
- Melhorou?
Rimos da sincronicidade das perguntas e nunca mais tocamos no assunto. Mesmo assim a amizade esfriou, não foi possível salvá-la. Não que ela tenha acabado, mas novas amizades precisam de um pouquinho mais de tempo, de dedicação... Infelizmente eu demorei muito para perceber que a bronca da Grazi não era com a minha nova vida, mas com a minha falta de disponibilidade.
O bar permitia que nos víssemos sempre, mas eu estava sempre distante. Com o passar dos anos, o máximo que sabíamos uma sobre a outra eram assuntos superficiais, notícias vinda de amigos em comum e nada mais do que isto.
No primeiro dia do ano de 1998, abri o jornal enquanto tomava o café da manhã e vi uma foto da Grazi. Li com a incredulidade dos que crêem que os amigos são para sempre; li a última notícia sobre a vida da primeira amiga que videotexto me deu.
A encontraram morta em um depósito de bebidas. Cinco tiros nas costas dados pelo ex-namorado. Levei um tempo para assimilar a informação. Era estranho imaginar a inexistência da Grazi e não era somente pelo fato da morte física, era como se os sonhos dela estivessem esparramados pelo chão e não tivesse ninguém para recolhê-los. A matéria do jornal dizia que ela trabalhava como jornalista na Bandeirantes. Ela estava no caminho que havia escolhido...
Ela o conheceu na academia, namoraram um tempo, ela queria terminar, ele não, ela insistiu, ele implorava, ela terminou, mas aceitou um convite de despedida na véspera do Natal de 1997.
O Serafim, o paquera que ela sempre desconversava nas raras vezes que nos falávamos, está foragido até hoje. Há alguns anos reconstituíram o crime no programa Linha Direta, mas sem sucesso. Os pais dela lutam até hoje para que o encontrem e eu não poderia contar a história do videotexto sem contar da L O B A e sem pensar que, se ela estivesse viva, ela teria certamente um blog, um belo curriculum e os filhos que ela tanto queria.

---------->> Continua

AMARULA COM SUCRILHOS

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