personalismo
no maço de cigarros, uma daquelas fotos que já aprendera a ignorar, inveterado que era. sempre tivera um sistema psicológico de detecção natural de locais e situações nas quais poderia ou não fumar, e já nem percebia mais as fotos muito bem produzidas. pegou o maço, deu a nota de dois reias e saiu do boteco, no qual só entrara pra comprar a desgraça fumígera.
quando foi botar o maço no bolso da camisa social velha e cinza, amarelada nas axilas, percebeu algo. nada muito sério, ou mesmo relevante, que não pra essa história. a foto não era uma das que estava acostumado a ignorar. num fundo escuro, como crepúsculo de um dia de chuva pela manhã, estava seu rosto. seu rosto mesmo, com todas as marcas de espinhas, olheiras acumuladas por anos de bebedeira e farras intermináveis, isso sem falar da maconhazinha que de vez em quando rolava por ali.
e a foto sorriu pra ele.
tá, dêem um desconto pra frase-parágrafo-telegráfica, mas esse ponto é relevante pra coisa toda então mereceu o destaque. voltemos, pois. e assim ele desatou a correr, segurando o maço bizarro e fechado até uma quebrada de rua mais úmida, escura, e discreta, onde pudesse analisar melhor o que ocorria.
recapitulando: o cara fumava pra burro, bebia às ganhas, fumava um às vezes, e nesse dia achou um maço com uma foto sua num fundo de muito mau-gosto, num maço de cigarros que comprou num boteco qualquer. claro que ele, assim como eu, deve ter achado que era uma brincadeira aquilo, alguém querendo lhe dar uma lição. e decidiu ler o texto.
O MINISTÉRIO DA SAÚDE ADVERTE:
ALFREDO, SE TU CONTINUAR FUMANDO DESSE JEITO, TU TÁ FUDIDO.
a foto.
o texto.
a cara dele ali impressa. 'maldita maconha'. sorriu de novo, a foto. ele jogou o maço ao longe, pra dentro da rua escura, foi-se embora numa correria que só vendo. claro que ele só aguentou correr meia-quadra, inveterado que era, mas isso não vem ao caso porque ele acaba de sair da história. o maço ficou ali abandonado, o alfredo mais além, tossindo e catarrando marrom, se recuperando e entrando em outro boteco pra comprar outro maço de cigarros.
uma senhora sem-teto passou pelo esbaforido fumante quando ele saiu do outro bar, carregando consigo a fotinho da impotência, levando suas quatro ou cinco sacolas velhas, suas roupas e ossos gastos, até quebrar numa rua escura pra tirar uma soneca e amassar umas latinhas de cerveja e refri light que trocaria por alguns troquinhos, até o dia em que não precisasse mais andar ou respirar ou fazer qualquer outra coisa. e viu no chão, ali, um maço fechadinho de cigarros.
como ela não suportava cigarros, perdera o marido por insuficiência respiratória, pisou com força no pacote, logo o jogando num monte de lixo velho e úmido da quebrada escura e úmida.
não, ela não viu a foto dela mesma se contorcendo de dor pelo esmagão.
como assim dois uísque?
8.6.03
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