3.8.03

Alguém deveria lançar um guia sentimental das cidades: nesta rua, a desconhecida tal e o desconhecido tal se encontraram pela primeira vez (fotos de fulano e fulana); nesta esquina beltrana de tal esperou duas horas por pacheco júnior que nunca veio (fotos de beltrana e pacheco júnior); nesta calçada se separaram para sempre fulana e fulano (fotos); e, neste cruzamento, morreu beltraninha (foto de beltraninha, da mãe da beltraninha, do namorado da beltraninha, e do assaltante de beltraninha). Em alguns pontos da cidade não daríamos um passo sem saber que estávamos pisando onde um casal tinha se encontrado pela primeira ou última vez. Andaríamos pensando nessas coisas o tempo todo.

A namorada se encontrando com o namorado na rua, e ele diz: “Sabe que poste é esse? Foi aqui que um tal de Cláudio Bonnaforte Filho esperou duas horas pela namorada, Valentina Tavares dos Anjos, numa tarde de abril de 1977. Ele tinha vinte e dois anos e trabalhava na loja de ferramentas do pai. Ficou lendo Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas durante duas horas, encostado aqui neste poste. Olha a cara dele aqui no guia.”

Não seria necessariamente só sentimental, esse guia. Todo tipo de informação sobre as ruas e esquinas da cidade. Nesta rua, por exemplo, Mário de Andrade queria que o seu pinto fosse enterrado (não estou brincando: ele disse que queria que o seu pinto fosse enterrado na Rua Lopes Chaves). Nada melhor para impressionar uma mulher do que ir andando com ela pela calçada, e de repente apontar para um ponto do chão e dizer: “Aqui! Bem aqui! Bem aqui, ó! Mário de Andrade queria que o pinto dele fosse enterrado bem aqui!”

Eu queria que o pinto de Mário de Andrade estivesse enterrado na lua, para impressionar ainda mais a mulher que estivesse comigo. Estaríamos num banco de jardim, de mãos dadas, etc. De repente eu tiraria o cachimbo da boca, daria um riso filosófico (uma única e quase inaudível expelida de ar pelo nariz), e apontaria para a lua com o cachimbo, dizendo: “Sabe, querida? O pinto de Mário de Andrade está enterrado bem ali, no Lacus Somniorum.” E ela espremeria os olhinhos, como se tentasse enxergá-lo dali.

no city-tour de alexandre soares silva

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