3.8.03

O Cão

Um vira-lata não olha para os lados quando anda, exceto se for atravessar uma rua. Caminha obstinado, como se estivesse atrasado para uma reunião importante que determinará o destino de toda a raça canina. Às vezes, morre atropelado.

Quando sentado, o cão vira-latas encara as pessoas com a benevolência dos sábios. Com os grandes olhos típicos de vira-latas, parece saber de cada dúvida que levamos no íntimo. Compreende nossas angústias com resignação própria da espécie. Abana o rabo e sai rindo atrás de uma cadela.

Uma matilha de vira-latas que persegue uma fêmea no cio se respeita. Há lá uma misteriosa hierarquia, à qual os cães vira-latas se submetem com pequenos ganidos de subversão. Saber-se pequeno diante do outro é o segredo para manter-se vivo nas esquinas desertas. Assim como saber se impor por aquilo que viveu e pelos ossos que roeu ao longo da existência.

A fêmea escolhe o macho pela ausência de sarna e pulgas. Às vezes, ambos são atingidos por baldes de água fria no meio do coito. Ainda assim, nada há de mais garboso do que um vira-lata que acabou de perpetuar a espécie. Não há vira-latas apaixonados.

Ao morrer, o vira-latas encosta seu corpo num lugar quentinho. Lá, silencia diante dos passos dos humanos, que não lhe dão atenção. Se uma criança cruel lhe atira uma pedra, ele não olha para ela, porque está concentrado em tarefa mais difícil: esperar a morte. Começa a chover, as crianças cruéis vão para casa, as pulgas fazem ninho no corpo do animal: nada importa porque ele espera a morte — que é certa, marcou horário e não se atrasa.

Assim é que morre e vive o vira-lata: digno.


apanhado pela carrocinha do polzonoff

Nenhum comentário: