20.8.03

O ladrão

Você abre uma tela nova. Lá no alto, pisca “documento 1”; cá em baixo, o cursor pede letras e palavras com urgência. Esse é o momento mais angustiante da minha escrita: o de ter que colocar a pena para escrever. Acho que é semelhante ao da agonia do goleiro na hora do pênalti. Todos ali olhando para a sua agonia e para o total desequilíbrio da situação. Eu fico atônito e perco para a máquina. Não consigo começar o texto sem lhe dar um nome. O batismo do texto é um ritual sufocante para mim. Penso em milhares de referências e faço mil e uma conjecturas. E nesse átimo, nessa fração de tempo, a minha angustia vai duplicando, crescendo de forma exponencial. Normalmente abro no “documento 1” quando alguma idéia ou mote já amadureceu, ou quando tive uma privação de sentidos e fui invadido por alguma flecha criativa. E todo o procedimento do Word parece me distanciar do propósito de criar. Aqueles segundos que fico escolhendo o título parecem um dreno aberto na minha criatividade. Tudo aquilo concebido segundos antes, todas as palavrinhas enfileiradas, todos os discursos e diálogos vão se esvaindo no procedimento e naquela escolha de nome. Já pensei em só colocar os títulos depois. Fiz isso durante um tempo, mas não funcionou. Pura paranóia e neurose. Eu não consigo começar um texto sem antes salvar o documento no lugar exato em que ele vai repousar no meu HD. O simples ato de começar o “salvar como” já coloca o dreno para funcionar. As idéias vão secando e toda a concepção se desfazendo. Pouco depois eu me prostro numa tela e saio à caça daquelas belas idéias. Rápidas, mas fugitivas. Escorregadias. Verdadeiros sabonetes deslizando de um lado para outro de uma banheira bem lisa. E eu de cócoras, pelado e molhado, tentando pegar aquele lux de luxo que samba de uma ponta à outra. Fico constrangido e encabulado, mesmo estando no silêncio e na solidão dos meus ambientes de escrita. As minhas idéias são assim: fogem de mim e se escondem num lugar que eu nunca consigo achar. Elas existem, estão ali. Elas começam a me invadir no caminho para o trabalho. Na orla engarrafada, com as mocinhas correndo na praia, os cães passeando, motoristas em zigue-zague, a fumaça preta dos circulares, a geografia desse lugar que me esfola todo dia. Elas vão me invadindo e compondo o meu frenesi matinal. A cada esquina uma associação, uma idéia, um enredo. Penso em prosa, em poesia, construo diálogos, falo sozinho. Mato minha família inteira e choro; choro como choraria no funeral, se o evento de fato ocorresse. Peço demissão, digo verdades aos meus chefes, aos amigos. Seduzo mulheres com motes eficientes e articulados. Crio personagens e dou vida às suas ações e pensamentos. Ao fim e ao cabo, vou correndo para a maquineta, com tudo fresco na cabeça e pronto para ser deitado sobre o papel. E então o dreno é ligado e começa a filtragem. Urano e plutão se unem para derrotar a minha ação e para embotar o processo criativo. É a fórmula da bomba a minar a base da minha imaginação e da minha vontade de escrever. Nada melhor que o empecilho do sistema de salvação de um texto para não me deixar liberar a trava. No final do procedimento completo (que vai de ligar o computador até salvar o texto), estou sufocado e derrubei vários cacos pelo caminho. O máximo que consigo e dizer para você, leitor, como é doloroso esse processo. E confirmar que hoje, quando liguei esse computador, tinha idéias mirabolantes sobre um tema que ia prender a atenção de todos vocês. Tema esse que já nem me lembro qual era.

epinion de Claudio Lampert

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