28.9.03

Quem avisa amigo é

Sentada no ônibus, lendo Budapeste, do Chico Buarque. Muitíssimo entretida. Ou entretenida, como diria certa apresentadora de televisão. De repente uma senhora senta-se ao meu lado e me pega de surpresa:

- Não leia no ônibus.

Assim mesmo. Uma ordem, entendem? Imperativo. Me preparo para (leia “preparo para” tudo junto e corridinho, não parece nome de índio?) ouvir da mulherzinha a última novidade em assaltos de ônibus. Naqueles micro-segundos que separam sua primeira frase da segunda, imagino a mulher me alertando sobre uma nova gangue especializada em assaltar pessoas que lêem no ônibus. Você aí, distraída, imagino a mulher dizer, vem um bandido, encosta o cano do revólver assim, de lado, no seu sovaco, daí baw-baw, lá se vai todo o seu dinheiro (arram, penso nos sete reais na minha carteira).

Mas eis que ela me vem com o papo mais desgastado de todos os tempos:

- Você sabia que ler no ônibus descola a retina?

Hum, deixe ver, acho que já me disseram isso antes sim, dona, vejamos...umas CEM MILHÕES DE VEZES.

Mas na vida real eu sou bem menos interessante que nos meus pensamentos:

- É mesmo?
- É, o pessoal pensa que é mentira, mas é verdade.
- Hum - observo a mulher, o cós da calça lhe bate quase no sovaco. Fico imaginando que a calça no estilo santropeito é tecnologia de ponta contra o assaltante de ônibus que junta a arma ao sovaco da vítima, à prova de bala e tudo. Mas a mulher está dizendo alguma coisa, dando seguimento à ladainha. Pensando no seu modelito fashion emergency, perdi um pedaço da frase.
- O que? - perguntei, fingindo interesse, mas sem tirar os olhos do livro.
- Eu. Agora mesmo, estou indo fazer a minha terceira cirurgia.

Agora ela tinha ultrapassado todos os limites do pequeno-contato permitido em ônibus. Não bastasse o imperativo da abordagem inicial, não bastasse a informação de mil novecentos e vovô criança, ela agora estava comprometendo seriamente minha leitura com aquele caso-verdade. Sim, porque aquele depoimento castrador só me deixava duas opções práticas. A primeira, seria fechar o livro num misto de súbito pânico e solidariedade à mulher de olhos miúdos, dentro dos quais eu imaginava uma retina pra lá de bêbada, boiando nas águas da leitura. Escolhi a segunda:

- Nossa! - fingi que olhei rapidamente para ela - mentira, olhei para o infinito e pensei putz. E voltei os olhos imediatamente para o livro. Cortando qualquer espécie de contato, solidariedade ou o escambau. Por alguns instantes, fiquei esperando alguma reação da mulher. Nem que fosse um tssssss seguido de um meneio da cabecinha, “esses jovens”, ou coisa parecida. Mas nada. O que foi muitíssimo pior, é claro, pois eu sabia, eu simplesmente tinha certeza de que, por dentro, a mulher se roia, afogada numa enxurrada de impropérios, praguejando, me desejando uma cegueira precoce, desprezando meu desprezo, se gabando internamente de sua infindável sapiência, da qual eu haveria de me lembrar no dia em que minha retina boiasse bêbeda e descolada dentro dos meus olhos, como a dela.

Eu ainda olhava para o livro, mas já não enxergava palavra, soterrada por minhas suposições e já mordida por uma pontinha de arrependimento, pois vá lá que a mulher no fundo estivesse certa, e que corresse de fato um sério risco ali – ora bolas, quem é que quer ficar cego no Rio de Janeiro, essa cidade de um azul brilhante? Pecado, até.

E de repente percebi que ela tinha vencido, a mulherzinha dos olhos miúdos. Pois eu já não mais lia o livro, apesar de aberto sobre minhas pernas. Talvez ela soubesse disso, talvez estivesse me espiando pelo canto do olho, quem sabe até sua retina, descolada, conseguisse boiar para um cantinho ainda mais apertado do olho e ela descobrisse, num estalo, que sua doença tinha, na verdade, lhe ampliado magicamente uma visão periférica que antes não lhe servia para quase nada. Então a imaginei sorrindo por dentro, vitoriosa.

Epinion

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