11.9.03

Quem procura as melhores palavras, ainda não está certo. Devemos procurar o melhor silêncio. O silêncio exato. Ninguém precisa provar o que o sangue entende. Não me esqueço o dia em que não fizemos nada, nada mesmo, parados, nos olhando como cúmplices, rindo a esmo, abraçados, olhando a janela como um vinho aberto. O futuro passeava pela janela. Talvez tenha me visto de mãos dadas com ela na velhice ou na infância. Não importa em que tempo estávamos. No nosso idioma, as pequenas gentilezas, como empurrar a cadeira para sentar ou amarrar os cadarços um do outro, já são suficientes para nunca esquecer os dias.

(...)

Eu vim morar em São Leopoldo por uma mulher. São Leopoldo é também uma mulher. Não apenas uma cidade em que fiquei, mas uma mulher que eu escolhi. Escolhi amar a cidade não para exibir suas qualidades, mas porque tenho consciência que faço parte dos seus defeitos. Os defeitos são virtudes que estão amadurecendo. Assim como a mentira é apenas uma verdade ganhando tempo para dizer a verdade. A cidade cresce comigo, habitando-me, dando o que comer para minhas distrações. Sou o que imagino além do que vejo.

(...)

Hoje não estou no trabalho, em casa ou em mim. Minha sogra, que não vejo como sogra. Mais do que tudo, a avó dos meus filhos, a avó amiga, com seus cabelos crespos que me agradam como moldura de olhos fortes, com suas mãos lentas de orvalho esbravejado, com sua pele funda de umidade contida, com seu vestido de evaporação de aves. Essa avó teve um derrame. De uma hora para outra, esqueceu tudo. Nenhuma lembrança subia nem pelas escadas muito menos pelos elevadores. O apagamento da escrita, da assinatura, do miolo da voz. Ela poderá se recuperar - precisará de dias para dobrar a maçaneta novamente e corresponder os nomes que vão dentro dos nomes. Passei a noite em claro no hospital. Vi um jovem menino esperando seu primeiro filho nascer, arfando um medo alegre de seu próprio medo. Vi um homem baleado, que viria a morrer, após reagir a um assalto. Vi sua mãe em prantos, não encontrando assento ao peso do seu rosto, e o filho chegando tarde demais. Vi uma indigente que filava cigarros de todos e estava ali para fugir do frio e assistir a novela na recepção. Vi um carroceiro estacionar no saguão sua máquina de papel com dois cds de faróis. Vi um funcionário me reconhecer como poeta e recitar seus versos sem me perguntar se havia gente dentro dos ouvidos para falar. Eu sei que o mundo me assistia também. Escrevo para me livrar da dor, mas a dor é que se livra lentamente de mim. Amanhã tentarei levantar, preciso que me puxes.

na caixa de sapatos de Fabricio Carpinejar

Nenhum comentário: