4.10.03

Como eu esperava, a vida de músico de rua não deu muito certo. Ora era alguém que vinha reclamar do barulho, ora era a polícia sem mais o que fazer, ora era algum fiscal da prefeitura querendo mostrar serviço. O dinheiro, que foi muito bom na primeira semana, foi escasseando. Era necessário procurar sempre novos lugares para tocar, o que não é nada fácil: é raro o canto de São Paulo que não conte com seu próprio menestrel. No fim das contas me enchi daquilo, vendi o amplificador e o microfone por um preço até maior do que esperava e fiquei dois meses só no puteiro mesmo. Quando o dinheiro acabou, vendi o computador para pagar mais um mês de aluguel. Ao que tudo parecia minha vida logo se tornaria bem sem graça. E foi aí que surgiu o Baiano, sempre ele:
- Rapaz, você não pode viver assim.
- Sei disso, Baiano. Mas tá difícil. Os poucos bares que ainda contratam músicos querem pagar quase nada. Tocar na rua é suicídio. Eu poderia procurar algo numa praça de alimentação de shopping center, mas isso eu deixo para quando não estiver mais nenhuma alternativa mesmo.
- Então eu tenho uma proposta para te fazer. Bom, eu não: o Deoclécio.
- Deoclécio?
- Meu irmão mais novo. Ele tem uma banda dessas que tocam em formaturas. Acontece que o baixista morreu num acidente e eles precisam de um substituto logo. Você toca baixo, não?
- Claro! Se eu tocar alto o povo vai embora.
- Continue na música, rapaz. Como humorista você tava era lascado...
- Hum. Bom, como eu faço para falar com seu irmão?
- Ah, amanhã tem ensaio da banda. Te dou o endereço e você vai lá.
No dia seguinte eu estava andando pelas ruas da Mooca procurando o endereço que o Baiano me passara. Demorei a encontrar; o bairro é cheio de ruas iguais. Depois de hora e meia andando, suado e já xingando o Baiano, o Deoclécio e toda a população de Monte Santo, finalmente encontrei a casinha acanhada do baterista. Mal toquei a campainha e a porta se abriu. Ao que parecia, estavam me esperando: os membros da banda estavam todos na sala, sentados no sofá esgarçado ou espalhados pelo chão. O que abrira era Gilberto, o dono da casa.
- Você é o Luís, o tal baixista de que o Dionísio falou?
- Sou sim.
- Bom. Aquele ali de óculos é Alexandre, o guitarrista. Do lado dele está Maurício, o tecladista. Os dois no sofá são o guitarrista-solo e o percussionista, Edu e Cabeça. E as duas beldades - apontou para duas gordinhas - são Alice e Shirley, que fazem o backing vocal.
- Prazer em conhecê-los - eu disse timidamente, e todos acenaram de forma vaga. Exceto o Cabeça, um preto de quase dois metros de altura, que teve a gentileza de levantar-se para me cumprimentar. - E o Deoclécio?
- Ah é. DÉO! Ô DÉO!
- Já vou! - uma voz irritada e um tanto aguda.
- Ele já vem.
Ouviu-se uma descarga, barulho de torneira. Então uma porta do corredor se abriu e de dentro do banheiro saiu um homem de cerca de 35 anos, magro demais e enfiado numa calça de couro, sem camisa. Tinha um lenço no pescoço, andava com as pernas muito juntas e os braços colados ao corpo. Uma bicha quase caricata.
- Olá. Eu sou o Deoclécio. O Nísio fala muito bem de você, rapaz. E então, pronto para embarcar em nossa pequena aventura? - ele falava assim mesmo, e olhando por cima do meu ombro, como se estivesse lendo seu texto num teleprompter logo atrás de mim.
- Claro, Claro.
- Excelente! Então vamos ensaiar!
Fomos para um quintal tímido nos fundos da casa. O equipamento dos caras era impressionante, altíssima tecnologia contrastando com a decadência geral do cenário. O instrumento do falecido baixista era um Warwick de 5 cordas lindíssimo.
- Bom, Luís. Essa pasta aí tem as músicas que tocamos. Nada de muito complicado: Queen, Pink Floyd, alguma coisa de Beatles, um axé aqui e ali, um quase nada de MPB, um pouco de samba, enfim, música de formatura. Vamos ver como você se sai.
Tocamos por cerca de duas horas um repertório dos mais ecléticos. Nas três ou quatro primeiras músicas eu ainda estava travado: há muito tempo não pegava num contrabaixo, e nunca havia tocado a sério um de cinco cordas. Mas pelo jeito o Deoclécio gostou do meu trabalho, porque ao fim do ensaio eu estava contratado.
- Muito bem, rapaz. Pode levar o baixo e o amplificador com você. Vai estudando, que temos uma formatura para fazer daqui a dez dias.
- Obrigado, Deocléio.
- De nada. E... Luís?
- Sim?
- Me chame de Déo, ok? Apenas Déo.
- Tudo bem. Déo.
- Melhor assim.
Voltei para casa de táxi com meu novo instrumento de trabalho e já estou ensaiando o repertório da banda há três dias. Tenho que estar afiado para a primeira apresentação. E torcer para que nenhum amigo me veja no palco. É meio constrangedor tocar em formaturas.

Chicote Verbal

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