20.11.03

Quem Não Lê Não é Humano

Alguns anos atrás (calhou de ser alguns anos atrás, mas poderia ter sido ontem, amanhã) vi na esquina da minha casa alguns operários descansando. Eles estavam sentados na grama, sem comer, sem conversar. Como é uma rua quieta, não podiam nem se distrair vendo carros ou pessoas. Olhavam, acho, o muro de tijolos do outro lado da rua, ou talvez alguma rachadura tortuosa na calçada. Estavam assim quando desci a rua no caminho do supermercado, e continuavam assim quando voltei com uma sacolinha na mão. Quando passei andando, olharam fixo pra mim; e eu não os culpo, porque a minha passagem, em contraste com o muro e a rachadura, deve ter tido para eles a importância cerebral que a obra de Aristóteles teve para Santo Tomás. (Um ser humano se mexendo! Óia! O que será que ele tem na sacola, etc.)

Quem não lê está condenado a estar preso num lugar só. Eles não liam, e por isso eram forçados a ficar ali naquela esquina olhando o asfalto. Dez minutos, quinze, meia-hora. Se estivessem lendo, poderiam sair dali, ir para a Samotrácia; mas não liam, e estavam ali, com uma atividade mental provavelmente parecida com a da grama na qual estavam sentados. Quando passei, e o deslocamento do meu corpo criou uma brisa, a atividade mental deles talvez tenha subido drasticamente para o nível de um dente-de-leão sendo despedaçado pelo vento. Mas isso é tudo.

“Ah, Alexandre, que feio, fazendo gozação com os menos favorecidos”. Bom, estou fazendo gozação agora, e confesso que acho as classes iletradas (às quais pertencem Jeca Tatu, Popó, Gugu Liberato e Moisés Safra) um tanto engraçadas. Mas na hora fiquei horrorizado. Percebi o que é ser iletrado: é ser forçado a estar onde se está e na companhia em que se está. Como um cupim. Como uma drosophyla melanogaster olhando para uma banana. Como um jogador de futebol olhando para a capa de um livro de auto-ajuda, ou um sindicalista tentando ler Karl Marx.

Quem não lê, no entanto, geralmente se sente superior a quem lê. Se sente mais prático, mais direto. “Me formei na escola da vida”. “Não tenho tempo para essas coisas. Trabalho muito. Quando pego um livro pra ler, sinto sono”. A sensação que tenho, quando vejo alguém que se sente orgulhoso de não ler, é a que eu teria se fosse convidado para jantar na casa de alguém e, de repente, o anfitrião me mostrasse todo orgulhoso o próprio pênis guardado numa caixinha. “Não tenho tempo pra essas coisas, então mandei remover. Quando tentava usar, pegava no sono”. Bom, só posso pensar- azar o seu. Grande parte do prazer da sua vida foi embora.

(...)

Alexandre Soares Silva

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