3.11.03

A saga do primeiro beijo (Post XXIV)

A paixão nos tira a graça quando acontece pela primeira vez. Não para sempre - com o tempo aprendemos a domá-la, mas no começo ela parece incontrolável. Graças a deus, nesta fase, ela assusta, mas tem os dias contados. A gente até acredita que ela morrerá conosco, mas ela passa. Sempre passa. Dói pra cacete e não há nada no mundo que cure as dores que ela traz. Às vezes, a cicatriz é tão profunda que nos faz olhar pra ela a vida inteira, mas a dor acaba. Paixão de adolescente, ou destrói um pouco do mundo que construímos, ou nos aprisiona. Foi o que aconteceu com a Marilu. Ela era livre, até que se apaixonou. O Kiko monopolizou sua mente, roubou-lhe o sorriso e tomou seu coração. Ela não conseguia se concentrar em mais nada. Por horas, eu fui obrigada a contar tudo o que sabia sobre ele, sua vida, namoradas passadas, família e interesses. Mesmo ansiosíssima com a proximidade do meu primeiro beijo, não pude deixá-la sem as respostas que precisava sobre o moço que, dali pra frente, mudaria a sua vida.
O dia acabou. Minha espera também chegava ao fim. Meus pais, que haviam deixado a Marilu dormir em casa, contrariando todo o sermão do dia anterior, decidiram implicar na hora da chuva de meteoros. Não nos proibiram de olhar para o céu, não teria lógica, já que eles acreditaram na estória do trabalho escolar, mas teríamos que fazê-lo do portão para dentro e não na rua. Foi uma decepção, mas não houve nada que pudéssemos fazer. Nos contentamos em ficar na garagem que nos separava da rua somente por um portão de grades. Dali, seria possível conversarmos com os meninos e olharmos os meteoros que os jornais prometeram.
O céu fechou. As nuvens esconderam as estrelas e a minha família desistiu de manter o pescoço virado para a lua. Eu e a Marilu imploramos pra ficar. Eles deixaram. Barra limpa, não demorou muito para o Murilo e o Ivo chegarem montados em suas bicicletas e se aproximarem do portão.
Conversamos um pouco - eles do lado de fora, nós do lado de dentro. Não teve mesmo jeito. Rimos das marcas roxas que a Marilu deixou no Ivo com a guerra de travesseiros e, pouco depois, os dois decidiram subir no muro pra conversar e me deixaram a sós e entre as grades com o Murilo. Eu não podia mais fugir. Ele começou:

- E então?
- Então...

Minha voz não saía. Ele riu e me pegou pelas mãos. Um friozinho gelado percorreu minha espinha de uma ponta a outra. Senti os pêlos dos braços arrepiarem, como nas estórias de assombração que meu avô contava, com a diferença que, ao invés de lacrimejar e correr pra perto da minha mãe, aqueles arrepios aconteciam misturados a uma deliciosa sensação corporal que me fazia querer abraçá-lo bem apertado. Ele percebeu e deslizou seus dedos pelo meu pulso.

- Você está com frio.
- Só um pouco...

Passou as mãos pelos meus braços como se quisesse aquecê-los.

- Você já tem uma resposta pra mim?

Senti um calor que coloriu minhas bochechas. Suspirei, abaixei os olhos e percebi que nossos rostos estavam próximos. Recuei um pouco.

- Suas mãos estão geladas.

Eu estava inteira gelada. Gelada, trêmula, envergonhada, assustada, preocupada e confusa. E se ele percebesse que eu não sabia beijar? Ele me deixava tão insegura! Era um garoto tão metido a sabichão! Lindo, mas galinha demais, falastrão demais. Eu tinha certeza de que ele espalharia para o bairro todo o quão beija-mal eu era. Eu não conseguia relaxar. Como se não bastasse, ainda considerava a possibilidade dele estar me fazendo de boba.

- Você jura que não está namorando ninguém?
- Não, Alê. Já disse que não. Pergunta pra Marilu, para o Ivo, pra quem você quiser.
- Eu sei, é que você não tem uma fama muito boa e você sabe disso.
- Com você é diferente.
- Você deve dizer isso para todas as meninas.
- Você acha que eu teria esperado até agora a sua resposta, se eu não gostasse de você?

Abraçou-me como pôde. Eu recuei mais um pouco, mas mantive minhas mãos entrelaçadas as dele. Mudei de assunto na tentativa de ganhar tempo:

- É, pelo visto será impossível ver esta chuva de meteoros. O céu está muito nublado. Nem a lua deu as caras.
- Só o fato desta notícia ter permitido que os seus pais deixassem você ficar aqui hoje já foi suficiente.
- Foi uma boa desculpa...
- A gente pode dizer pra todo mundo que começou a namorar em uma noite de chuva de meteoros. O que você acha?
- Uma chuva de meteoros que se escondeu de nós.
- Ah, ela deve ser tímida. Como você.

Mesmo que eu não fosse, teria ficado. Sorri avermelhada e ele me puxou de novo pra perto dele. O portão atrapalhava cada vez mais.

- Parece que essas grades não querem que a gente namore.
- Mas elas não vão impedir, vão?

Encabulada, tentei desviar meu olhar do dele. Não consegui. Senti novamente o rosto dele colando no meu. Ele me pegou pela cintura, me aproximou do seu corpo e beijou meu queixo, meu nariz, me apertou um pouco mais contra as grades de ferro do portão. Eu fechei os olhos, tentei me desvencilhar dos seus braços, mas ele me beijou.
O breu dos olhos fechados misturado com o gelo do meu estômago me causaram comichões que bloquearam meus pensamentos por segundos e, antes que eu me desse conta do que estava fazendo e pudesse avaliar se aquilo era bom ou ruim, um estrondo e um golpe do lado direito do meu corpo me jogou no chão. O Murilo deu um salto para trás apertando uma das mãos. Estava sangrando. A Marilu e o Ivo, desesperados, vieram nos socorrer.

----------> Continua
a novela em Amarula com Sucrilhos

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