time for heroes
qual o sentido de uma casa na qual preciso cheirar o edredon e o futon todo dia antes de dormir, centenas de litros d'agua se esvaem por uma torneira quebrada, o gato caga e mija no quarto dos filhos, os cômodos cheiram mal, na qual as imagens que deleitam minha mente são contaminadas pela visão diária de massas disformes de restos de comida tomados por formigas assiduas e fezes moles e fedorentas sobre caras de merda num jornal? estragos estéticos. meus sentidos parecem embotados. o sofá está com pêlos, uma poltrona em farrapos me encara numa metáfora-alerta: lute ou terminará como eu! os móveis, outrora de charme improvisado, agora caquéticos, repousando sobre o chão riscado e escondendo em suas entranhas mais urina agressiva do mesmo gato, uns poucos copos de cristal para os vinhos que não posso tomar e aparelhos de raclete. sobre a mesa, jornais jogando necessidades urgentes na minha cara. quero comprar tudo, não tenho dinheiro para comprar pão.
o espelho entrega o corpo disforme, cansado e com nódulos, magoado pelos gozos mortos em minhas mãos. precisando de água salgada e a tempestade silenciosa dos tubos para voltar ao prumo. escondo essa bosta num terno de lã e me vou. uma escada cinza de degraus quebrados, adornadas por portas com flâmulas de times de futebol e placas de automóvel com datas de nascimento. weird. uma agressão atrás da outra. um dias desses cruzei com uma barata em decúbito dorsal, masturbando-se com todas as patas antes de morrer. Henry Chinaski mora aqui. não tenho bebido. entre licores mortos, vinhos pobres e garrafas baratas de rum e vodka de segunda, prefiro a sobriedade. um espumante repousa na geladeira aguardando alegria. não gosto de ir a casa dos outros. parecem sempre mais limpas do que a minha, mesmo que eu saiba que atrás do cheiro de perfume se encontra a sujeira da mentira, do ciúme e do medo. não gosto de mentira, de dissimulação. de omissão. não gosto de ficar preso em prol da liberdade alheia. onde trabalho, a morte me cerca. ok, outros trabalham aqui também, mas estão anestesiados. alguns pela burrice automática de suas vidas. outros, pelos câmbios automáticos de seus carros. escarros.
preciso de um boquete. uma chupada bem dada, babada, com olho no olho. preciso comer um cu. gozar na cara, rir, de putaria. hedonista não ama, fode. e tento acreditar nisso pra seguir em frente. na rua, dois carros bateram. carros de fodidos como eu: um taxista e um funcionário da prefeitura, caça mosquitos, sabe? quando meu velho carro italiano comprado em 48 vezes ainda não tinha sido devolvido para a financeira eu costumava ter medo de bater. não tinha seguro, portanto, não podia matar ninguém e dar indenização depois. sempre tive muita vontade de bater no carro dos outros, de matar o que não gosto. todo mundo tem, mas ninguém fala. só falam de coisas bonitas. eu não. eu falo de merda também. e dos merdas. como tem gente de merda nesse mundo, que quer tudo e só olha a porra do próprio umbigo. eu quero ver a minha porra no umbigo dos outros. meu passaporte venceu e não tenho vontade de fazer outro. não vou a lugar nenhum. de vez em quando vou a outra cidade comer uma boceta. um cu. tomar uma cerveja. ver alguma exposição. pra surfar, não tenho viajado. não é importante. só pra mim. tenho R$363,00 ( surreal...) que precisam durar até o fim do mês. o aluguel já paguei. ufa! sobre minha mesa, as fitas do último documentário que dirigi. bons tempos. me vejo inerte, antes criava e lutava por isso. hoje, crio caso comigo mesmo. loser. é uma sala fria, triste. machos fodem na tela, machos fodem minha sensibilidade com suas bravatas e autoridades. vou olhar a rua. muita polícia. vai ter tiroteiro. tiroteios diários. todos acham normal. adoram contar para os amigos que os vidros do prédio são "praticamente intransponíveis". cuzões! vão morrer todos, seus putos arrogantes.
melhor relaxar, escutar The Libertines. "Time for Heroes".
L'ENCRE INVISIBLE
8.12.03
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