27.1.04

Tagarelices de Domingo, Tomo III

Alguém deveria lançar um guia sentimental das cidades. Nesta rua, a desconhecida tal e o desconhecido tal se encontraram pela primeira vez (fotos de fulano e fulana); nesta esquina beltrana de tal esperou duas horas por pacheco júnior que nunca veio (fotos de beltrana e pacheco júnior); nesta calçada se separaram para sempre fulana e fulano (fotos); e, neste cruzamento, morreu beltraninha (foto de beltraninha, da mãe de beltraninha, do namorado de beltraninha, e do assaltante de beltraninha). Em alguns pontos da cidade não daríamos um passo sem saber que estávamos pisando onde um casal tinha se encontrado pela primeira ou última vez. Andaríamos pensando nessas coisas o tempo todo.

A namorada se encontrando com o namorado na rua, e ele diz: “Sabe que poste é esse? Foi aqui que um tal de Cláudio Bonnaforte Filho esperou duas horas pela namorada, Valentina Tavares dos Anjos, numa tarde de abril de 1977. Ele tinha vinte e dois anos e trabalhava na loja de ferramentas do pai. Ficou lendoZen e a Arte de Manutenção de Motocicletas durante duas horas, encostado aqui neste poste. Olha a cara dele aqui no guia.”

Não seria necessariamente só sentimental, esse guia. Todo tipo de informação sobre as ruas e esquinas da cidade. Nesta rua, por exemplo, Mário de Andrade queria que o seu pinto fosse enterrado (não estou brincando: ele disse que queria que o seu pinto fosse enterrado na Rua Lopes Chaves). Nada melhor para impressionar uma mulher do que ir andando com ela pela calçada, e de repente apontar para um ponto do chão e dizer: “Aqui! Bem aqui! Bem aqui, ó! Mário de Andrade queria que o pinto dele fosse enterrado bem aqui!”

(O gesto fica mais charmoso se você bater com a sola várias vezes no ponto exato e repetir: "Bem-a-qui!")

Eu queria que o pinto de Mário de Andrade estivesse enterrado na lua, para impressionar ainda mais a mulher que estivesse comigo. Estaríamos num banco de jardim, de mãos dadas, etc. De repente eu tiraria o cachimbo da boca, daria um riso filosófico (uma única e quase inaudível expelida de ar pelo nariz), e apontaria para a lua com o cachimbo, dizendo: “Sabe, querida? O pinto de Mário de Andrade está enterrado bem ali, no Lacus Somniorum.” E ela espremeria os olhinhos, como se tentasse enxergá-lo dali.

Outra possibilidade é dar uma baforada filosófica no cachimbo (apoiando o cotovelo com a mão livre, e soltando a fumaça em direção ao céu) e dizer: “Mário de Andrade escrevia si ao invés de se e mãi ao invés de mãe. Sabia disso?” Diga isso muito solene, para impressionar a sua namorada com a sua seriedade em assuntos ortográficos. Ela dirá: “Ah!”, e romperá com você no dia seguinte (por email). Mas pelo menos vocês tiveram um belo momento no jardim, coisa e tal.

(Sempre existe a possibilidade que ela responda tudo isso com um "E quico?" As mulheres de hoje vivem dizendo "E quico?" cada vez que queremos dizer alguma coisa minimamente interessante. Não sei bem o que quer dizer "E quico", mas me disseram que é algo muito ofensivo. Como são revoltantes as mulheres que dizem "E quico"! Eu seria banguela se perdesse um dente cada vez que uma mulher me disse isso, sério mesmo. Por trás de cada grande homem há uma mulher dizendo "E quico?".)

Mas voltando ao Guia Sentimental das Ruas de São Paulo. Uma variante do guia seria um que marcasse, nas ruas, acontecimentos imaginários. “Nesta esquina vinte si-fans atacaram Sir Denis Nayland-Smith a mando de Fu-Manchu. A batalha se estendeu até o semáforo da Cardeal Arcoverde”, etc. Ou: “Nesta fonte Ava Gardner beijou o toureiro Manolito Montillo enquanto Frank Sinatra subia no Monumento dos Imigrantes e chorava. Outra pessoa que subiu no Monumento dos Imigrantes foi o explorador Sir Richard Francis Burton, que traduziu Os Lusíadas inteirinho lá em cima, jogando bananas nos si-fans que passavam embaixo", etc.

Bom, já é domingo, credo - e me despeço. Sigam minhas dicas românticas e tudo correrá bem. Na dúvida, se ela não se impressionou com os hábitos ortográficos de Mário de Andrade (mas que mulher não se interessa por isso? Céus!), faça o seguinte. Pouse o cachimbo no banco (arrumando-o bem devagar, como se ele fosse um ratinho adormecido) e, com uma certa solenidade, aperte os seios de sua namorada, dizendo o invulgar e nunca assaz usado fon-fon. Elas adoram...

É com pequenos gestos assim que uma mulher se sente amada. Outra possibilidade é dar um mata-leão nela enquanto passeia com ela no shopping. O famoso "half-nelson"!

Alexandre Soares Silva

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