9.2.06

O som da fuga

“Eu não sabia que era tanto tiro, porra! Acertaram todo mundo, todo mundo morrendo. Um camelo, estômagos na cara, areia quente. Eu só pensava em sair dali. É igual… à hora de ejacular. Fugir. Quando aquela música…”

Entramos em Faluja às três horas da tarde. A camuflagem da cor do deserto, nem um fio de ar suspenso. Me lembrava da fazenda dos meus pais, me lembrava de Rebeca na festa, nem do meu cachorro, mais da mulher – sou bom com os bichos. Eu tinha uma guitarra, eu escutava meu pai falar da bandeira eu vi o Johnny Cash no Cassino Paraíso dizendo ser da pátria o meu sangue. E foi, não o meu. Entramos em Faluja para libertar os bárbaros dos bárbaros e tanta mulher eu não gostava de fazer aquilo, mas os negros com suas tatuagens de basquete faziam, eu vi uma chupar enquanto a baioneta dupla a pressionava. Eu tinha a Bíblia no bolso, aumentada no seu dobro, por Joseph Smith. Eu não tomava café. No meio da orgia, só tinha visto aquilo na Guerra nas estrelas, no filme quando pequeno, aquelas casas que subiam pelo chão. Salvamos as crianças do deserto. Todas no caminhão. Os velhos. Qualquer um de barba era imobilizado. M-16. M4-lança granadas. Como a arma pulava. Aranha menor – uma teia tatuada, amor na mão. Eu atirei em um que correu em minha direção, não entendia o que falava, seria aquela, com os negros da América dourada, a sua filha? Mãos para o alto! Só deu tempo de uma vez, lancei então uma granada. A Bíblia no meu bolso. Eu me lembrava quando comprei a minha guitarra, o Metallica cuspindo na gente em Desmoines. Eu tocava ela no ar. O cantor fez um papo-firme para mim jogando cerveja na minha cara. Queria dormir sem areia. Eu e os amigos abraçados. Isqueiros. Depois que atirei, veio aquele silêncio que o fogo traz. Não sentia mais calor. Sentamos na terra devastada. As crianças estavam salvas, as mães e os velhos não. Os homens, alguns animais, deitados, imensos, ainda segurando suas armas, na verdade enxadas. No relatório, o quê, capitão? Ninguém viu, soldado. Antes eles. Em uma fonte, letras deste Deus que não era o meu, mas dizem que era o mesmo anjo que falou com ele. Como? A Bíblia ou me enlouquece ou me tira daqui, por favor, meu Deus. Me deixe um homem, e não morrer pelas mãos deles. Labão decaptado por Néfi travestido, a mesma voz. Caminho, abro portas. O silêncio retardado que a falta de vida traz, um, dois, outro bezerrinho. Começo a relaxar. Engatilho. Dedo fora do cão. A tropa faz um círculo. Que brilho! Um cone surge no céu, sinto uma picada, mil moscas a revoar, que buraco. Caio. Som de metralhadoras. Debaixo da terra as balas nos comiam. Uma emboscada. Harry, Santino, e o negro, ainda fechando as calças, caem rastejando. Turbantes pela areia. Se movem rápido. O rosto do capitão cai no meu colo aberto. Não grito, rastejo para trás da fonte d’água tentando me proteger. Engatilho. Bato com o rifle na perna. Funciona, porra, funciona! Take a look to the sky just before you die! – aquela música ao longe misturada ao brilho do sol, da faca e do medo de morrer – igual um bicho acuado, uma vaca inseminada, estes meus olhos lentos. Cercados. O coturno cheio de areia. Cuspo uma bola vermelha, uma faca entra nas costas, sinto sair pela ponta rasgando as páginas da Bíblia, a capa de couro, o sol eterno me possui, idioma estranho: “Razi, Haram Haram!”, brincam com a minha carcaça, eu não consigo mais respirar, levo uns chutes, não sinto, como fosse um modelo de sonho, um cavalo. O árabe se joga por cima de mim. Fazem uma roda, querem me matar como um cão, lento. Vejo dois ajoelhados rezando perto das mulheres mortas, o véu em pedaços que me cobre, então escuto a música mais alta. Súbito. Eles correm, chegam os helicópteros com a bandeira listrada, estremecendo o deserto, trazendo aquele vento. O videoclip imitado não precisava ser tão igual, a areia se levanta, a música alta os assusta, e enquanto o sargento médico enfia bolas de sangue no meu braço com uma caneta, o furo na garganta me ajuda a respirar. Surdo. O mundo se apaga em mim. Peço perdão. Se a gente pedir, Deus ajuda, eu garanto. Mãe? Mãe? Ela não escuta. Reza, mãe. Levado para o hospital em Bagdá, vejo a estátua de Satã cair. Herói. Não. Quando voltar para casa, só eu vou me lembrar. Incógnito. Passeando pelo inferno dos supermercados.

Jorge Cardoso em Fakerfakir

Nenhum comentário: