30.5.05

MOCCA CHOCOLATA YAYA (Segundo Ato)

Na biblioteca do solar dos Soares Silva, Alexandre está entediado numa poltrona. Veste roupão e chinelos de couro. Na sua frente, em outra poltrona, Voz na Minha Cabeça lê "O Declínio da Civilização Ocidental".

Alexandre levanta e começa a andar pela biblioteca pensativamente. De súbito vê um busto de Cícero na estante e não consegue conter um esgar de desgosto.


Alexandre - Com solenidade declaro que a Antigüidade toda me entedia. Chego a pensar que foi de propósito.

Vnmc - Não, não, que é isso.

Alexandre - Ah, foi sim. Os filósofos pré-socráticos inventavam toda semana um novo elemento do qual o universo supostamente é feito (saliva, pedregulhos, muco, resina de pinheiro) só pra me fazer dormir. Tenho certeza. Cícero fazia discursos de quatro horas sobre o uso de tacapes nas Guerras, sei lá eu, da Panônia, só pra me entediar. No meio do discurso ele se interrompia (até posso vê-lo) pra piscar pra os senadores, que riam dizendo entre si, todos com a cara do Charles Laughton, “Ré ré ré, está chato mesmo. O Alexandre vai dormir". Inventaram as declinações por pura maldade... (campainha toca) Quem bate?

Vnmc – Ninguém bate, foi a campainha. E quem pergunta “quem bate” na vida real, meu Deus?

Alexandre – Sim, sim, a campainha. Tenho andado distraído por causa de informações chocantes que li numa revista científica. Por exemplo, você sabia que é possível quebrar o pinto? Ah, não atenda.

Vnmc – Tenho que atender, para não continuar ouvindo o seu monólogo.

Abre a porta. Mulher da Seicho-no-Iê aparece com folhetos na mão.

Mdsni – Bom dia. Será que vocês têm cinco minutos?

Vnmc – Ele tem, ele tem. Entra...

Alexandre – Eu achava que tinha, mas subitamente me sinto como se estivesse muito ocupado. Tarefas esquecidas oprimem minha mente. (aperta a cabeça, dando sinais de grande dor) Tenho que assistir a RAI hoje para aprender italiano. Oh, meu Deus...

Mdsni – Eu realmente não queria atrapalhar, só queria mostrar estes livrinhos pra vocês...

Alexandre (interrompendo) – São da Antigüidade?

Mdsni – Não.

Alexandre – Discursos de Cícero?

Mdsni – Não. Eu só queria mostrar este livrinho, “Luz da Vida, Esperança no Coração”, que pode passar muita coisa de positiva para vocês...

Alexandre – Uma vez me passaram uma coisa positiva, minha cara, e demorei dois anos para me curar. Mas me deixe ver. (pega o livrinho) Ugly-looking little bugger. Tem certeza que não é um discurso de Cícero? Ah, sabe, eu leria, mas prometi a mim mesmo que nunca mais leria livros impressos em páginas verde muco.

Vnmc (para Mdsni) – Pode deixar, eu compro. Vai ser um prazer ler o livro em voz alta pra ele nas longas noites de inverno.

Mdsni – Obrigada, mas é de graça. Posso perguntar se vocês têm alguma crença?

Alexandre – Ah, muitas. Nossa, como eu sou crédulo.

Vnmc – É sim. O que quer que você diga, ele acredita. Experimenta.

Mdsni – O senhor acredita na Vida?

Alexandre – Se eu acredito na Vida? Eu adoro a Vida! Sou fanático pela Vida! É melhor do que Buffy! Todos os dias puxo aquela poltrona ali para aquela janela, está vendo?, e fico vendo a Vida lá embaixo. Vem ver, vem ver. (arrasta mulher para a janela)

Mdsni – É bonito. Não tem muito acontecendo, né?

Alexandre – É verdade, a Vida é um pouco monótona. Sem contar que as pessoas no ponto de ônibus são feias. Putz, olha a gordinha.

Mdsni – Mas o que eu quero dizer é, vocês acreditam na Energia Vital? Na força do Pensamento Positivo?

Alexandre (subitamente absorto, para Vnmc, ignorando Mdsni) – Mas como eu ia dizendo, é terrível, dá pra quebrar o pinto como se fosse um osso.

Vnmc – Podemos tentar.

Alexandre (para Mdsni) – A senhora sabia que é possível quebrar o pinto como se fosse um osso? Se estiver duro, é claro. Sabe quando a mulher está por cima e ela se joga pra trás? Ah, minha boa mulher, trate bem o pinto do seu marido, é o conselho que lhe dou. Uma vez que um homem quebra o pinto, perde toda a confiança. Para o resto da vida ele vai fazer sexo bem devagarinho, eternamente com medo de ouvir um estalo.

Mdsni – Eu sou viúva.

Alexandre – Claro que é, minha boa mulher, claro que é. Droga, chegou a hora de ligar na RAI. Será terrívelmente indelicado se eu ligar a tevê na RAI? Mas é sempre indelicado ligar a tevê na RAI.

Vnmc – Diz pra ela a expressão mais linda da língua italiana.

Alexandre (ligando a tevê) – Cinque e quarantacinque. Não é lindo? Cinque e quarantacinque. É melhor do que toda a Divina Comédia. Olha, um programa de auditório.

Mdsni – Acho que tenho que ir indo.

Alexandre – Não, não, eu mudo. Eu ponho na HBO e a gente vê um documentário com gente feia fazendo sexo. Mas eu ia dizendo: cinque e quarantacinque é não só a expressão mais linda da língua italiana, mas também a mais linda de todas as línguas. Ah, da próxima vez que for à Itália, vou todos os dias ficar parado no meio da Piazza di Spagna esperando que alguém me pergunte as horas.

Vnmc – Muito chic. Mas e se forem sete da noite?

Alexandre – Direi que são cinque e quarantacinque. Sempre direi que são cinque e quarantacinque. (olha a tevê) Ei, esses são mais feios do que de costume.

Mdsni – Tenho mesmo que...

Vnmc pega um busto de Papa Doc Duvalier em cima da lareira e, depois de alguma hesitação, esmaga cabeça de Mdsni.

(…)

todos os três atos em em Alexandre Soares Silva

25.5.05

A última vez a gente nunca lembra

O reencontro tinha sido agradável, apesar das mágoas. Depois veio a confusão do divóricio, as brigas, os primeiros três anos morando juntos, as noites aproveitadas em casa, em meio à mudança e às obras. Tudo melhorava, sem dúvida, mas ela não quis aceitar seu convite para a viagem de lua-de-mel. Sabia que depois viria o casamento, o noivado, aquele namoro interminável, o primeiro encontro. Com tanta felicidade, seria muito doloroso se desconhecerem por completo.

Pseudoliteratura, quase-crônicas, e outras pretensões

A viagem de Théo

A religião é um construto humano, que procura substituir a realidade cognoscível pelos anseios do praticante. E como toda invenção humana, não costuma dar muito certo.

Fruto de nossa ignorância infinita, a religião desconversa e usa as lantejoulas de tradição para impressionar os simplórios. O que deveria impressionar muito pouco, já que os Neanderthais também tinham religião, mas não sobrou nenhum pra contar a história.

E apesar de experimentalmente errônea, a religião segue por aí, rebolando e difundindo seu manto de opressão, sob promessas de libertação ou de uma vida futura de prazeres ou serenidade. Ou seja, é mais ou menos como o direito, a medicina, a matemática ou a câmara dos vereadores da minha cidade.

Mas como todas essas superstições são muito mais mortais que a religião, o melhor é ficarmos com ela mesmo. Até porque, quando morre, pelo menos a gente vai pro céu.

dies iræ/a>

20.5.05

A Vingança dos Sítios

Ufólogo, segundo consta, é um especialista na observação do céu, só que incapaz de enxergar um palmo adiante. São a espécie mais inofensiva de visionários. Eu, que não entendo nada de alienígenas nem do futuro, não pude deixar de notar que o Anakin está vestido de adolescente afegã num cartaz grandão aqui perto.

(…)

dies iræ

DIÁLOGOS DE SEMÁFORO

– Moço, leva aí um pouquinho de minha verba de gabinete.
– Não, não posso.
– Ah, vai, moço. E não fecha o vidro do carro, não. Por favor!
– Escuta, deputado, eu prefiro ensinar a fazer uma peixada do que ser cooptado por peixe graúdo, entendeu?
– Mas, moço, veja bem. Eu podia estar gastando em outra coisa. Eu podia estar contratando parentes. Eu podia estar aliciando votos pra base governista. Mas eu estou aqui, só pedindo pro senhor pegar um pouco de minha verba de gabinete. Olha aí. Dois mil reais. Dois e quinhentos. Três mil, pronto! Vai. Pega aí, pra ajudar.
– Ajudar como, deputado?
– Ah, moço. Pegou muito mal a aprovação do último aumento da verba. Até minha filha, que faz pós-graduação de economia na PUC, diz que os colegas ficam jogando moedinhas no chão quando ela passa. Uma vergonha. Pega um pouco aí, vai. Pra pelo menos eu poder olhar minha família de cabeça erguida! Pega aí, moço, pra ajudar em casa!
– Hum. Não sei.
– Seguinte, moço. Quatro mil reais. Pronto. Mais duas vagas no avião da comitiva presidencial! Três! Três vagas!
– Certo. Pra ajudar, então. Mas olha: não acostuma, viu? Amanhã vou passar nesse semáforo aqui e não quero ver o senhor de novo. Certo?
– Sem problemas, moço. Amanhã é quinta – o senhor não vai me ver aqui, nem no Congresso nem em lugar nenhum de Brasília. Valeu!

*********

– Psiu. A porta do seu carro está aberta.
– Imagina, ó musa. Pra você está aberta a porta do meu carro e a do meu coração. Aliás, pra você eu abro, escancaro, dou meu coração em oferenda no altar do auto-sacrifício passional.
– Er… o sinal vai abrir.
– Sim, princesa. Assim como minha alma se abre pra receber você em júbilo, como uma noiva diáfana com as melenas cobertas por flores de laranjeira e aclamada por um coro de querubins.
– Olhaí, o sinal ficou verde.
– Sim, verde como os campos floridos que serão palco de nossa inenarrável cerimônia de conjugação espiritual, qual Teseu e Hipólita numa noite de verão, minha musa. Ouço, ouço agora as buzinas como escuto, com os ouvidos da alma, os sinos bimbalhando, as campânulas anunciando nosso conluio. Vejo pelo retrovisor o motorista de trás emulando em voz alta o tonitruar da bigorna de Vulcano, onde são forjados os relâmpagos que prenunciam a chuva que renova a terra e faz germinar a semente de nosso amor. Vejo a longa fila de carros atrás de nós como um séquito a acentuar o espírito de congraçamento e confraternização. Isso, amada, parta, corra, vá à frente e já prepare nosso recanto, a senda de nosso aconchego, pra que quando eu chegar você já esteja paramentada com o branco da pureza da entrega. Vejo, ó musa, o policial de trânsito que se aproxima como a autoridade cerimonial que irá lavrar nossa união; ele traz o bloco de multa como quem porta o livro sagrado da consumação do… Veja só, é uma policial – como eu não percebi? A austeridade do cargo embotando a graça e o encanto naturais. Boa tarde, policial. Céus: já falaram que seus olhos têm a cor das tamareiras do Peloponeso, e que seus lábios são dois gomos carmim de volúpia e concupiscência? Já?

*******

– Escuta, esse teu adesivo aí. É verdade?
– Qual adesivo?
– Pregado aí atrás, no seu carro: “Sou Deus, graças aos católicos”.
– Ah, claro. O tal negócio. Eles acabaram me comprometendo sem querer, com aqueles adesivos “Dirigido por mim, guiado por Deus”. Houve dupla interpretação por parte do departamento de trânsito. Queriam que eu tirasse carteira, ou iriam proibir os tais adesivos. Então, quando consegui a habilitação – bombei uma vez, sabe; vivia com o pé na tábua – , resolvi comprar esse Uno Mille. E coloquei o adesivo aí, pra evitar dúvidas.
– Pois é. Esse Detran é fogo.
– Sem dúvida. Ah, abriu. Até mais.
– Até. Ah, e cuidado com aquela pista dupla ali, depois da curva.
– O que tem ela?
– Fazem blitz direto, lá.
– Certo, certo.

Ao Mirante, Nelson!

INVENTÁRIO INUSITADO DE MOMENTOS MAIS ROMÂNTICOS EVER

Deitados na cama, muitos beijinhos, abracinhos, cheirinhos e festinhas depois:

- Tu és perfeita, perfeita, perfeita...
- Tu também. Principalmente teus 4,5º de miopia.

----

A moça com as pernas e os braços em volta do corpo do moço, diz:

- Ó, sou um koala.
- Hummm, eu também.
- Não, tu é grande demais pra ser koala.
- É?
- Sim, demais.
- Eu sou o quê?
- Um urso pardo.
- Se tu continuares me chamando de gordo, vais virar urso panda em vez de koala.

Megeras Magérrimas

15.5.05

RPGistas & Afins: Os Novos Intocáveis

Vejam bem: meu problema não é nem com RPG. RPG me parece ser relativamente interessante, aciona o cérebro, estimula a criatividade, etc etc. Mas o problema é que conheço as pessoas que praticam RPG.
E vem daí minha grande dúvida: por que praticamente só os losers dos losers se dedicam a isso?
Vejam o caso do cara que veio falar comigo. Sua lista de interesses inclui: coleção de selos, moedas e cards, joguinhos de estratégia e simulação no computador, RPG, AD&D, mangá e anime. Meu deus, parece o verdadeiro paradigma do loser típico. Será que esse homem desenvolve alguma atividade que não seja patética?
Star Trek, Senhor dos Anéis, ficção científica de modo geral, RPG, mangá, anime, não há nada intrinsecamente errado com nada disso. Eu, por exemplo, adoro Star Trek e Senhor dos Anéis, e não tenho vergonha disso. Tenho vergonha é das outras pessoas que também gostam.
Com raras e honrosas exceções, 31 anos de observação empírica me demonstraram que a maioria das pessoas atraídas por essas atividades são inapeláveis losers e nerds. Perdedores, tímidos, inarticulados, fracos, sem quaisquer habilidades sociais. Aquele tipo de gente que mora com a mãe até os 40 anos, usam óculos fundo de garrafa e uma caneta no bolso da camisa, e trazem sempre a boca meio aberta, quando não o nariz escorrendo. O ponto mais baixo da involução humana.
E volto à minha dúvida inicial: por que atividades a princípio saudáveis e interessantes atraem hordas desse tipo de gente?
Minha teoria antropológica é a seguinte: consciente ou inconscientemente, essas pessoas desistiram. Olharam em volta, viram um mundo povoado de gente bonita, inteligente, articulada e decidiram que simplesmente não tinham como competir. E criaram para si uma nova casta de (literalmente) intocáveis, se congregando em porões para discutir quem foi o melhor capitão da Enterprise, e se perdendo por horas e horas em mundos imaginários onde, ao contrário do nosso, eles podem agir e interagir, quem sabe até ser heróis e bandidos, magos e guerreiros.
Assim bem por alto, bem filosofia de botequim mesmo, eu diria que quanto mais imaginativa a atividade, mais ela vai atrair àquelas pessoas insatisfeitas com a realidade atual. Quem não consegue nada na Terra, sempre pode tentar ser alguém na Terra-Média ou na Federação Unida dos Planetas.

Liberal Libertário Libertino

Soja

Arrependo-me de muitas coisas. Arrepender-se é um ato muito saudável e demonstra auto-crítica, por isso não confie em gente que só diz que se arrepende do que não fez. Essa gente exibe a presunção de nunca ter cometido alguma tolice, o que obviamente é uma mentira, afinal, todo mundo faz besteira. Para comprovar isso, é só olhar seu último almoço. Aposto que você comeu um monte de bobagem, é melhor começar a se arrepender. Eu, por exemplo, já comi carne de soja.
***
Soja não foi feita para ser leite, nem para ser carne, nem para ser comida. Quando eu fui ao interior de Goiás, conheci um menininho franzino chamado Francisco. Ele brincava feliz em meio aos pés de soja, de vez em quando pegando um grãozinho de soja e usando-o como bolinha de gude, ou jogando-o no riacho para vê-lo quicar. Perguntei-lhe se ele sabia que aquele grãozinho com o qual brincava feliz podia virar leite e, pior, carne. Ele me respondeu negativamente e, com os olhos grandes cheios de lágrimas, indagou: "Se isso é leite, o que é que sai das tetas da Marilda?" Eu não soube responder, fiquei meio encabulado. Francisco, então, argutamente, disse a mim: "Ora, mas isso não é nem comida! Quanto mais leite! Não podemos comer essa coisa que só serve para diversão, que só serve para eu brincar com os grãos! E não pode ser leite algo que não sai das tetas da Marilda! Não pode ser carne algo que não é animal! A cada vez que você comer um grão de soja, ferirá a minha alma. Não coma soja, isso não é da natureza. Dica de goiano."

manipulação

Razão

A reportagem recomenda que, se seu filho quiser uma calça de 1600 reais, você deve dar e depois descontá-la da mesada dele em “parcelas consideráveis”.
Eu recomendo que, se seu filho quiser uma calça jeans de 1600 reais, você dê uma bronca-esculhambativa nele, bote o moleque pra trabalhar de balconista ganhando 400 reais por mês e ainda bote de castigo a criatura. Eu também recomendo que, se você comprar uma calça de 1600 reais para ele (ou para você), que você se interne, porque você pirou.
Como diria umas das personagens do Érico Verissimo que eu mais amo, o Liroca, esse mundo velho está de patas para o ar.
...
Quando a cunhada da Ana soube o quanto ela tava pagando por cada sessão de terapia disse: "por metade do preço, eu deixo vc falar duas horas!!! e ainda te dou toda a razão!"

Drops da Fal

12.5.05

O outro bicho

Glorinha às vezes sente culpa por estar com ele, pensando no outro que se foi. Projeta as virtudes, procura semelhanças e, exatamente pelas tantas afinidades, ela o tem consigo.
Diziam que isso lhe faria bem, que era essa mesmo sua função, dar guarida, acompanhar, dar carinho, aplacar a carência. Não que discorde, mas ela não se sente totalmente confortável com isso.
Com prazer, compra a comidinha, as roupinhas, paga o banho, os cuidados especiais. Escolheu a raça que mais juntava os atributos do amor que se foi.
Chega a ser engraçado encontrar semelhanças entre homem e cachorro, mas sua carência é tanta que o usa, descaradamente, para superar a dor da perda.
Ela o vê em casa. Faz um carinho e ele, a seu modo, retribui. Ela sorri, tenta supor que ele também. Mas, em verdade, ele está deitado, olhando ao vazio. Talvez dormindo, ele sempre dorme.
Não importa.
Glorinha, mesmo culpada, sabe que lhe fez muito bem ter trazido para casa esse cara, porque não agüentava mais sofrer pela perda de seu amado cãozinho.

Cachorrada no Bico de Pena

10.5.05

Ontem à noite entrei numa padoca do Bixiga e sentei perto da chapa. Gosto de curtir o trabalho do chapeiro, alguns são mestres, quase malabaristas. Do outro lado, um balconista conversa com uma garota que veio comprar pão. Ela vai embora, ele ri alto e conta pra todo mundo: ela disse que eu sou enrolado que nem caramujo! E repete várias vezes, todo contente: que nem caramujo! Depois vem perguntar baixinho pro chapeiro:

- O que é caramujo?

catarro verde

A literatura e as escalas de grandeza

Tera é uma adaptação originária do grego tetra-, que, como sabemos desde 1994, é um prefixo que significa "quatro", como em "tetracampeão", "tetraciclina" ou "tetralegal". Tera é um multiplicador, por exemplo, um teragrama equivale a um trilhão de gramas. (Não confundir com "tetragrama", que significa uma palavra com quatro letras.) Donde podemos concluir que um teraconto são um trilhão de contos.

Giga, também uma adaptação do grego gígas, deu origem a "gigante". Assim, um gigagrama equivale a um bilhão de gramas. Logo, um gigaconto são um bilhão de contos.

Mega, do grego megal(o)-, significa "grande", como em "megacéfalo". Pois bem, um megagrama equivale a um milhão de gramas. Assim, um megaconto é uma unidade equivalente a um milhão de contos.

Quilo, vem do grego khílioi. Todos sabem que um quilograma equivale a mil gramas. No entanto, pouca gente se dá conta de que um quiloconto vale mil contos.

Mili, forma derivada do francês millième, não do latim millesimus (há controvérsias desde Sêneca), significando "milésimo". Assim, um miligrama, claro, equivale à milésima parte do grama. O miliconto, portanto, é a milésima parte de um conto.

Micro, do grego mikrós, significando "pequeno", "curto", "pouco" ou "pouco importante". Um micrograma é a milionésima parte do grama. Logo, um microconto é um conto dividido por 1 milhão. Correto?

Nano, outra vez do grego nánnos (é impressionante!), significa "excessiva pequenez", derivando para "anão". Um nanograma é a bilionésima parte de um grama. Então temos que um nanoconto equivale à bilionésima parte do conto.

Pico, do italiano piccolo (ah, enfim o império romano), significando "pequeno". Um picograma é um trilionésimo de um grama. Assim, um picoconto é um conto dividido por 1 trilhão.

Já o conto, a unidade lingüística que nos interessa aqui, vem do latim computus, significando "cálculo", "cômputo", "conta", a que o povo daria posteriormente a acepção de "narrar", vindo de "computare": enumerar os detalhes de um acontecimento, relatar etc. Nada se determinou a respeito do tamanho exato de um conto, se deve equivaler a mil escudos, um milhão de réis, 50 rasos de sal ou 20 meadas de linho. Sabe-se apenas que o conto deve ser uma narrativa breve ou concisa. Seja com milhares de tetragramas ou com um bilionésimo de picograma.

Assim, de posse desta elucidativa tabela, querido autor, escolha o tamanho desejado de sua literatura e mãos à obra. Para finalizar, desejo registrar aqui meus agradecimentos à minha Tabela de Unidades de Pesos e Medidas, sem a qual este esboço da tese acadêmica que ora preparo, intitulada "A Literatura a Metro", teria sido impossível. Título, aliás, inspirado numa afirmação de Júlio César anotada em seu De Bello Gallico. Diz lá o intrépido general romano que, ao ser indagado sobre o que achava das filosofices de seu arquiinimigo, o arenguista profissional Cícero, ele teria dito: " -- Ave, aquilo tudo é literatura pra mais de metro."


Prosa Caótica

6.5.05

e também

o grande mentiroso, pra quem você pedia as horas e ele explicava a origem do conceito de relógio, a evolução do mecanismo ao longo da história, as implicações metafísicas do controle do tempo, tudo com fartas citações e devaneios. quem sabe quando já não precisasse mais, quando já houvesse atrasado, quando já não mais importasse - e depois de muita enrolaçã - você ficasse sabendo as horas, meia hora (no mínimo) depois de quando você precisava saber. usura não era pecado porque não se podia vender o tempo, porque o tempo a deus pertencia? então. ele não concorda com isso.

modo furtivo

5.5.05

Típica piada infame do Iaio, meu irmão: ele e Thaty iam começar a assistir "Sobre meninos e lobos" quando ela pergunta "o filme é sobre o quê"?

Ele responde: "meninos e lobos".



Par Elis

Licor de Marula com Flocos de Milho A?ucarados

- É pra morar ou trabalhar?
- Trabalhar...
- Que tipo de empresa? Faz muito barulho?
- Não, não... É só para o escritório. E quanto o senhor quer no aluguel?
- Quero mil, mas posso fazer por novecentos se não mexer na estrutura do imóvel... E também porque eu preciso alugar rápido. Não posso ficar com a casa fechada muito tempo... Essas casas me dão tantas dores de cabeça que só de não ter mais que pagar impostos já é um alívio... Tem uma moça que pediu pra eu reservar a casa pra ela, mas eu não vou. Imagina você que ela quer colocar carpete nessa sala e pintar... De jeito nenhum! Eu cuido bem das minhas casas, só contrato profissionais qualificados para as reformas, sou engenheiro formado, construí cada um dos meus cinco imóveis. Imagina, se vou deixar alguém reformar o que eu construí? De jeito nenhum!
- Mas eu precisaria mexer só um pouquinho nesse...
- Alugo pra você porque sei que do jeito que está, está bom. E porque eu estou cansado dessa vida, sabe? Passo os dias esperando que isso acabe logo...
- Anh? Mas... o senhor...
- Casei, tive quatro filhos doutores, trabalhei duro a vida toda e, hoje em dia, nem meus netos eu vejo direito... Minha neta mais velha fez quinze anos a semana passada e não ligou nem pra saber como eu estava...
- Mas por que não ligou o se...?
- Minha mulher foi embora no ano passado. Disse que eu sou muito chato. Onde já se viu? Quarenta anos depois ela diz que eu sou muito chato! Por que ela não viu isso antes de casar!? Será possível que alguém precisa de quarenta anos pra descobrir que alguém é chato?
- Entend...
- E agora vem essa menina querendo reformar o que eu construí... De jeito nenhum! Nas minhas casas ninguém mexe. Essa gente tem coragem pra gastar duzentos reais em uma garrafa de vinho no fim de semana, mas não tem coragem de pagar um profissional decente para arrumar a casa que usufrui... Você acha que eu não gostaria de ter tomado bons vinhos na vida também? É claro que eu gostaria! E olha que eu fiz tudo na hora que eu achei que tinha que fazer... Fui um jovem estudioso, me formei na melhor universidade, fiz a vida antes dos trinta, quando chegou a hora de casar procurei uma mulher boa pra casar e casei. Tive quatro filhos doutores, construí minhas casas para ter sossego e aposentadoria e, mesmo assim, perdi o tempo de tudo... Errei o tempo das coisas! Foi isso que eu fiz.
- Imagina... o senhor ainda tem tempo... Pode aproveitar a aposentadoria para viajar, passear, tomar os vinhos bons, se...
- Tudo na vida tem um tempo certo e as pessoas pontuais, como eu, são as que mais perdem a hora. Perdi o tempo das coisas... Quando eu podia viajar eu trabalhei, quando podia ter brincado com meus filhos mandei eles estudarem, quando minha mulher me pedia atenção eu achava que era reclamação... Não deu tempo para o vinho, para o riso... Vida sexual boa eu nunca tive. Quando podia ter sexo não fiz, quando achei que teria, casei e o casamento parece até que só existe pra estragar o sexo e afastar o casal. Nem ir ao banheiro em paz eu posso mais... Essa droga de problema pra urinar, as costas que não me deixam dormir, trezentos reais de remédios por mês, novecentos e cinqüenta de assistência médica, duzentos de seguro, cento de vinte de IPTU de cada uma das casas... Ainda bem que tenho minhas casas de aluguel... E eu passo a noite inteira rezando pra morrer, rezando para que deus realmente exista e me leve embora daqui...

E eu só queria alugar o raio da casa do homem... Voltei pra casa chorando, desliguei o celular e abri uma garrafa de vinho.


Licor de Marula com Flocos de Milho Açucarados

3.5.05

O problema é que este blog entrou no ritmo do resto da minha vida. Quer dizer: só funciona sob pressão! Sem falar que tudo é motivo pra me dispersar.

Agora mesmo eu tava vindo escrever aqui alguma coisa que lembrei, aí resolvi beber água antes, quando abri a geladeira vi a torta de coco que sobrou do aniversário do meu irmão, peguei um garfo pra comer só um pedacinho, mas é impossível, abri o armário pra pegar um pratinho, então vi o caminho de formigas na parede, fui seguindo a linha pra ver de onde elas vinham, molhei um pano e fui passando no caminho - adoro fazer isso! - quando passei pelo lixo, amarrei o saco e fui lá fora jogar, na volta vi o pote do bolo em cima da pia, deixei o prato pra lá e resolvi comer no pote mesmo, trouxe tudo pra sala, sentei aqui e... o que era mesmo que eu ia escrever?

E esqueci de beber água.

bocozices

2.5.05

o diário de um careca-semi-gordo

Ontem fui pedalar e hoje minha bunda dói por conta daquele selim fêla-da-puta.
Estes dias estava olhando um 3X4 de quando eu era criança, bem criança mesmo, talvez três ou quatro ou cinco anos. Nunca sei direito quantos anos tem uma criança, às vezes olho e penso que tem uns dois anos e os pais dizem que tem seis meses! Sem noção de bebês...
Bom, mas aí olhava a minha foto e estava ali pensando se eu queria ser eu hoje, sabe? Eu perguntei, perguntei, mas o eu ali do 3X4 não respondeu, continuou com aquela cara me olhando. Às vezes acho que não, às vezes acho que sou até mais, que sou genial, que sou tudo o que uma criança queria ser. Hahahaha... Sei lá. Quando tinha uns nove, dez anos tenho certeza que não ia querer ser um cara com mais de vinte e cinco anos e que sente dor na bunda quando anda de bicicleta.
A vida dá tantas voltas, né?

o som nosso de cada dia

Some girls...

...te desafiam para um braço de ferro, te olham nos olhos, sorriem, mal conseguem cerrar o punho em torno do teu punho, fazem uma sucessão de caretas dignas de Conan, o Bárbaro, e, quando você ri, relaxa e permite que vençam, te socam com mãozinhas brancas e dizem que você não deveria ter deixado;

...te encaram do banco à frente no ônibus com uma nuca indignada e eloqüente que afirma “eu sei exatamente o que você está pensando, rapá”, mesmo que você (ainda) não saiba, porque está seriamente concentrado no que Lothar von Falkenhausen tem a dizer sobre o fim da era do bronze na China;

...te ligam e –em tom professoral- explicam veementemente um problema, enquanto você tenta em vão interromper o discurso e explicar que, yo, minha senhora, creio que a senhora sem querer acabou ligando pro ramal errado;

...te questionam com ar dubitativo e cético quanto à organização das suas estantes, e tamborilam as unhas curtas, de esmalte impecável, contra o MDF das prateleiras, procurando traços de poeira e claramente pensando “humpf, homens”;

...te recebem em trajes menores no horário combinado e sorriem com um olho maquiado e o outro não, avisando que tem uísque embaixo da pia e um jogo de basquete na TNT (e você nem pergunta se vão demorar pra se arrumar porque já sabe a resposta);

...te escrevem um e-mail quilométrico em resposta às três linhas que você enviou propondo um almoço e, depois de discorrer sobre o monofisismo, a cláusula filioque, a persistência dos Caimitas (think Bible, not Dorival), esquecem de responder ao convite;

...te elogiam pela elegância da gravata mas mudam imediatamente de opinião quando perguntam onde você comprou e você explica que ganhou de alguém;

...break your heart as you knew they would, yet you can’t help but admire their style.

Filthy McNasty

Almanaque das profissões (I): médico

Existem dois tipos de médicos: os que cobram antes, e os que nunca param de cobrar. E há também os da rede pública, que não cobram, mas são impedidos pelo juramento de Hipócrates de aparecerem pra trabalhar.

Medicina, étimo originário do judas medicina, que significa "não fui eu" ou "a fina arte de te torturar", mas isso depende da hora do dia. Uma profissão universal, e justamente porque todo mundo saiba um pouco, à beira da falência, em decadência franca e total.

Não só a medicina perde anualmente milhares de profissionais para ocupações genéricas e afins -- ortopedia, empurroterapia, cirurgia psíquica --, como a alopatia, o seu catolicismo, vê anualmente milhões de clientes se dirigirem para ramos igualmente inúteis, porém menos mortais, da cura -- homeopatia, apicultura, florais de Bach.

A medicina é, portanto, não só uma profissão que veste mal, mas também paga mal, pode te forçar a servir na Amazônia, dá cadeia em casa de erro, e dor de cabeça pra passar no vestibular. Mas pelo menos você só começa a trabalhar depois dos trinta...

Ficha do Personagem
Requerimentos: Destreza=12, Carisma <6, um estetoscópio, três jalecos
HD: d8 + plano unimed; Thaco: eu tô em cima, eu tô embaixo
Saving Throws: priest (+1 vs. poison, -3 vs. death spell)

dies iræ

IDÉIAS E MARTINI

Idéia não pode ser paparicada, estragada, só porque foi tida. Idéia tem que ser jogada ao relento, com dez reais no bolso, para se virar sozinha. Morte aos parideiros que se jactam, com a volúpia – uh – fazendo o olho boiar: “Tive uma idéia!”. A estes devemos devolver um olhar de nonchalance e resmungar: “Pois eu não tenho idéias, não deixo a ninguém o legado do meu miserê ” – só para ver como fica a cara do parideiro de idéias. Idéia tem que ser negligenciada por um longo período, para não crescer achando que é gente. Devemos ter notícia da idéia só de tempos em tempos, para ver se, sei lá, precisamos enviar uma ordem de pagamento. A um amigo que se lembra e diz, imaginando agradar, “Ei, vi sua idéia anteontem!”, devemos murmurar um “Sei” mais seco que o martini do Rick’s Cafe Americain. É bom ficarmos sabendo que nossa idéia, no mês passado, foi confrontada num beco por uma gangue de imigrantes portorriquenhos ou de skinheads. É bom sabermos que ela apanhou – idéia precisa apanhar – e urge que camuflemos o discreto orgulho pelo fato dela também ter dado uma porradinha aqui e um chute ali. Morte a quem anda com foto da idéia na carteira. Longa vida ao ladrão de idéias, que na primeira esquina as assalta sem clemência: “É para edificar o caráter delas”, dirá ele à polícia, e a polícia precisará acreditar. Se soubermos que a idéia não resistiu à penúria e saiu assaltando também, reajamos com a indiferença de quem acabou de ficar a par de um detalhe estatístico. Se recebermos um telefonema às dez da noite informando que nossa idéia gerou outra idéia, devemos bater o fone e não sem antes dizer “Não é problema meu”. E torcer para que a idéia seja minimamente sensata e siga nosso exemplo. Mas não torcer muito, pois não se torce por idéias. Um dia, então, baterão à sua porta e você a princípio não vai reconhecê-la. Vai ver no semblante dela o background de quem apanhou, foi distorcido, mal aproveitado, explorado, mal inserido no contexto – mas o melhor: não cedeu à facilidade de posar de vítima. Aí, naquela fisionomia calejada e um tanto austera você de repente vai vislumbrar o seu semblante. Então cuidado: chame-a para entrar, pergunte o que ela toma e muita, muita atenção – não vá pôr tudo a perder agora, seu velho sentimental – para, no preparo das bebidas, virar o rosto na hora certa e evitar mostrar o lampejinho no olhar, o lampejinho aceso pela lembrança de quando você a acalentou assim que ela foi tida. Fique esperto: só depois disso é que você vai virar de novo o rosto e, sim, perguntar se ela prefere o martini dela com azeitona.

Ao Mirante, Nelson!