28.2.06

Ética

Odeio o tal código de ética masculino: quero dar prum menino que não quer me comer só porque o amiguinho já teve lugar na fila. Que ridículo isto, se esse código fosse realmente colocado em prática, a gente só poderia dar pra 6 homens no mundo.

Torpor

Desejo

Sabe o que eu queria?

Que todas essas mulheres magras que vivem reclamando que precisam emagrecer, tivessem algum piripaque e acordassem gordas um dia. Só pra elas verem como é.

foi só um parênteses

O tempo

Sabe quando você não é mais criança, nem adolescente e nem jovem mais você é? Quando você tem responsabilidades, tem filhos, tem mais de 10 anos de experiência no que faz, tem que orientar outras pessoas? Quando tem gente que até acha você referência para alguma coisa? Você é mãe ou pai, professor ou professora, chefe etc etc. Habita agora a esfera da repressão, da chatice, daquele que, mesmo sendo legal, vai ter uma hora em que tem que endurecer porque, afinal de contas, alguém tem que ensinar alguma coisa pra essa pessoa nova. Olha, era mais fácil antes. Ser oposição, ir contra, deixar que os chatos me chateassem, eu, tranqüila, cool e bacana. Mas agora você tem que fazer chamada, chegar na hora certa, não comer na frente do computador nem da televisão, não facilitar sempre, tem que mandar escovar os dentes, sair do msn, não pode sorvete agora, a vida não é assim, primeiro o dever e depois o prazer.
Quer saber? Construir o caráter dos outros é preciso, mas é um saco.

coisas de motherns

Vil metal

Juju descobriu o dinheiro, e não pode ver a gente colocar a mão na carteira que logo pede:
-Mãe, me dê um dinheirinho!
Esses dias eu estava contando o dinheiro pra pagar a empregada, quando a pequena adentra a sala e começa:
-Você dá um dinheiro pra mim?
Eu, puxei uma nota de um real e entreguei à ela.
-Não mãe, eu quero de onça!

trapos coloridos

O QUE DIZ DE HOJE O HOMEM DO AMANHÃ?

- Vai lá, Claudinho.
- Não, não!
- Vai lá, larga de ser bobo!
- Mas, é que... Eu quero ir embora, sei lá, vergonha.
- Vergonha? Desde quando você tem vergonha? Vai lá, moleque e fala logo com ele!

A mãe empurra um Claudinho choramingando até o homem com roupa prateada e uma faixa pendurada no teto com os dizeres "Homem do Futuro".
- Oi - diz a mãe ao homem - esse é o Claudinho.
- Olá, Claudinho.
- Eh... Oi! Posso ir embora agora?
- Não não viemos até aqui pra você ir embora, não é filho? - diz a mãe, com os dentes cerrados.
- Mas, eu...
- Mas, nada. Vai. Desembucha.
- Ai... É... Senhor é do futuro, não é?
- Eu, do futuro? De onde você tirou essa idéia, Claudinho?
- Bem, o senhor apareceu na televisão.
- Sim, eu apareci na televisão, mas isso não quer dizer que eu seja do futuro.
- É, mas no filme, o senhor vinha do futuro com essa roupa prateada e... Essa mesma roupa de hoje e...
- Fala logo, menino! - diz a mãe.
- Ok, ok, garoto. Tá bom, eu sou o homem do futuro. - o homem pisca para a mãe.
- Sabe o que é... Você sabe dizer as coisas que vão acontecer, certo?
- Sei, claro, afinal, eu vim do futuro.
- Você sabe me dizer, se... - Claudinho olha para a mãe e fala no ouvido do homem.
- Bem, Claudinho... Fique tranquilo. Tenho certeza que sim.
- Obrigado, homem do futuro.

Mãe arrasta Claudinho para longe do homem.
- O que foi que você perguntou pra ele?
- Não foi bem o que eu perguntei... Foi mais um pedido?
- Pedido, que pedido é esse que você não podia pedir pra mim, sua mãe?
- Eu pedi pra ele chamar o segurança porque tem uma mulher louca me segurando e me tratando como filho dela.

Cachorro com Galinha

Porque faz muito calor!

Mais calor. Gasto restos de energia para refrescar o avesso pela pele, oca. De fora para dentro. Ventilador, gelo, sorvete, água. Muita água em borrifos gelados: no rosto, na cabeça, nos braços, enquanto a nuca pede carícias de gelo.
Os gatos estirados na frente do ventilador. As plantas amolecidas, exaustas.
Nada se mexe. O ar pesado, denso e quente. A piscina morna é desagradável. Melhor chuveiro-cachoeira frios.
Lembrei do Estrangeiro, livro de Camus: aquela história de um francês que mata um árabe, porque estava muito calor.
É, absolutamente, compreensível - calor assim abusivo provoca imprevistos.

Compulsões Diárias da Bea

Memórias de um não folião

Eu abomino carnaval. A minha idéia de inferno? Ter que assistir eternamente a desfiles de escolas de samba na avenida. Se alguém quiser me torturar e arrancar meus segredos mais íntimos, é fácil. Basta me amarrar e me fazer ouvir por alguns minutos um CD de samba enredo. Depois de umas três daquelas músicas repetitivas e insuportáveis, eu confesso minha participação no esquema do mensalão, reconheço minha culpa na conspiração para matar Kennedy e admito que ajudei nos atentados de 11 de setembro.
Minha aversão pelo carnaval começa pelos carros alegóricos. Onde os comentaristas da Globo vêem beleza e criatividade, eu enxergo apenas mau gosto e breguice. Nada mais kitsch do que a águia da Portela.
Os temas escolhidos pelos carnavalescos são sempre originais e imprevisíveis. Quantas vezes você já viu alguma escola de samba mostrando o sofrimento dos negros no Brasil? As belezas naturais do país também estão sempre lá, assim como homenagens constrangedoras a personagens históricos. Neste ano, duas escolas falam de Santos Dumont. Mas há também as que preferem ousar. Uma escola de São Paulo, por exemplo, decidiu tratar dos 250 anos de nascimento do Mozart. Pobre Wolfgang. Nem Salieri pensaria numa vingança tão horrível.
(…)

Torre de Marfim

VADE RETRO!

— Vixe, Marina, o Adelson resolveu fazer terrorismo comigo, eu tô perdida!
— Calma, mulher, o que foi que ele fez?
— Me pediu em casamento.

conversas furtadas

LOCALIZAÇÃO PRIVILEGIADA

- Onde estás?
- Eu tô três horas à frente e 25º abaixo.
- Coordenadas?
- Não, fuso e temperatura. E aqui na rua há uma boite, uma igreja e, bem lá no finzinho, uma banca de jornais. Tô praticamente na praça dos três poderes.

Megeras Magérrimas

25.2.06

Síndrome do Útero Furioso

Sintomas:

* Todas as crianças mais lindas do mundo, bochechudinhas, sorridentes e cheirosinhas te olham e esticam os bracinhos pra você;
* Você conversa com suas colegas de trabalho sobre chupeta, mamadeira, fraldas, sopinhas, papinhas da Gerber e da Nestlè, Mucilon e Farinha Láctea;
* Você sabe o que é Nenedent e Funchicória porque foi procurar no Google "cuidados com bebês";
* Você FOI PROCURAR no Google "cuidados com bebês". Ahn...e também "esquema vacinação infantil", "bullying idade pré-escolar"...;
* Você ajuda a neta da sua cabeleireira a calçar o sapato, e se derrete toda quando ela vira e diz: "Bigada, moça!";
* Você se flagra botando a mão esquerda nos quadris e a direita na barriga e olhando pro espelho "pra ver como ficaria";
* Você sente vontade de aprender a cozinhar. De verdade;
* Você tenta diminuir a quantidade de palavrões que usa (já falei disso aqui...)
* Você começa a sonhar com um programa de televisão que apresente números de arte com músicas educativas, figurinos feitos de fitas e maquiagem de palhaço;
* Você adorou o novo CD da Adriana Partinpim Calcanhoto;
* O filho do seu vizinho surge do nada andando de bicicleta, se joga na frente do carro da sua mãe, ela freia a tempo. Sua reação não é "MOLEQUE DOIDO FILHO DUMA ÉGUA!" - ao invés disso, você suspira e fala macio: "Criança, cuidado!"
* Você pensa que, oras, vinte anos é o ápice da saúde e da fertilidade, a mãe-natureza deve estar irritada com essa desobediência aos prazos dela.

SIUFU. Muito cuidado com ela. Ela é sorrateira, sutil. Um dia, você percebe que seus genes estão a fim de se perpetuar, o útero grita, berra, se pudesse espernearia.
E você olha pro céu, azul e pan-americano, e se pergunta se conseguiria dizer o porquê dele ser azul, caso alguém de olhinhos castanhos e pequenos te perguntasse...

as aventuras da Menina Prodígio

Mundo cão

O pateta do meu vizinho sai de casa às pressas, acha que bate a porta e vai-se embora. Os monstros que ele cria — um rottweiler e um pseudo-pitbull — passam o focinho na maçaneta, abrem a porta e vêm para o hall do prédio. Não saem para o pátio porque a porta do prédio tem uma mola que, se não a tranca, ao menos a deixa mais fechada que aberta.
Outro vizinho — recém-mudado para cá, coitado — chega da rua e, se não fosse de circo, era comido pelos dois logo à entrada, como primeiro prato. Safa-se dos canibais, bate a porta do prédio e fica do lado de fora. Seguro, é verdade, mas preso fora de casa.
Daqui de cima, escuto a confusão e vou à janela: o vizinho preso na rua, branco como um palmito; está começando a chover; minha empregada acabou o serviço e precisa ir embora; minha mulher está para chegar; o filho da vizinha de baixo quer sair de casa para brincar. E os dois monstros se debatem com a porta fechada, furiosos, e se debaterão enquanto ela resistir às patadas. E agora? Telefono para os bombeiros:
— Bombeiros, boa tarde.
— Boa tarde. — e conto a história toda ao bombeiro, lembrando que vi seus colegas, noutro dia, socorrendo um gato preso no telhado de outra vizinha.
— O senhor há de convir que um gato não é um rottweiler... — retruca o homem, com um tom assustado na voz.
— Um rottweiller e um pitbull. — corrijo.
— Sim, e mais essa! Nós nem temos equipamento para isso!
— E o que o senhor sugere? — pergunto, encurralado.
— Que o senhor chame a polícia.
— E eles têm equipamento?
— Eles têm armas. Pode ser que ajude.
Eu agradeço e desligo. Essa é exatamente a ajuda que eu quero, mas a última que posso solicitar. Eu só quero prender os cachorros, não enterrá-los. Mesmo assim, ligo para a polícia, enquanto os monstros se debatem com a porta do prédio.
— Polícia Militar, boa tarde.
— Boa tarde. — e conto a história toda novamente, mencionando o que foi conversado com os bombeiros, suprimindo a parte do "equipamento".
— E o que o senhor quer que a gente faça?
— Ora! — digo eu — Sei lá! Estou telefonando para que vocês me digam o que fazer!
— Acho que senhor deve prestar queixa na delegacia e registrar um boletim de ocorrência.
— Amigo, eu lhe juro que faço isso tão logo possa sair de casa. Mas, entrementes, o que o senhor sugere?
— Bem... eu posso mandar uma viatura...
— E, se me permite a curiosidade, exatamente o que essa viatura faria?
— Os policiais poderiam tentar entrar no prédio...
— E se não conseguissem?
— Annn... acho que eles teriam que atirar.
— Ah, não! Deixa pra lá! Vou ver por aqui se eu arranjo outra maneira.
— Não quer mesmo que mande a viatura? — insiste o homem.
— Não, obrigado. Se a situação piorar, pode deixar que eu ligo de novo.
Desligo e procuro o telefone da Carrocinha, também conhecida por Centro de Controle de Zoonoses. Não existe. É preciso ligar para o número central da Prefeitura, entrar no menu "outras informações", esperar meia hora e...
— Prefeitura, boa tarde.
— Boa tarde. — e conto a história toda mais uma vez, enfatizando a parte dos tiros, para ver se sensibilizo alguém. Fico muito feliz quando ouço a senhorita me dizer:
— Vou registrar seu pedido de remoção. O senhor pode me passar alguns dados?
E eu lhe passo nome, endereço, RG, condições geográficas e topográficas do prédio, a raça dos cachorros, desde que horas estão soltos, quem corre riscos, o diabo.
— Sua solicitação já está registrada, senhor. — ela informa, feliz.
— Ótimo. E agora?
— Agora é só aguardar 72 horas, e a viatura será encaminhada para o local.
— O quê? — me descontrolo. — Minha filha, em 72 horas, os cachorros já morreram de fome, e eu só vou precisar de uma carrocinha para carregá-los para o cemitério!
— Desculpe, senhor, mas este é o prazo padrão para estas ocorrências...
— Setenta e duas horas? Tenha paciência! Olha, me dê um número qualquer do Centro de Controle de Zoonoses, qualquer um, da cozinha, do vestiário, qualquer coisa serve, por favor, de qualquer departamento. Eu me viro!
Ante o meu destempero, ela desobedece ao manual e me dá um número. Eu agradeço, desligo e ligo para a Carrocinha.
— Zoonoses, boa tarde. — e eu, mais uma vez, conto a história toda, mais uma vez, e de novo, relatando a conversa com os bombeiros, com a polícia e com a Prefeitura.
— Só um minuto, vou passar para a veterinária de plantão. — e passa para a veterinária de plantão.
— Veterinária, em que posso ajudá-lo?
E eu digo. Digo tudo. Conto a história toda, falo do medo dos bombeiros, da solução final proposta pela polícia, do descaso da Prefeitura, do meu vizinho branco feito um palmito, agora sob a chuva, da minha empregada que precisa ir embora, da minha mulher que está para chegar, do filho da vizinha que quer brincar, falo de mim mesmo, que tenho mais o que fazer do que ficar protegendo a vida de dois cachorros filhos da puta que me matariam para comer — no melhor sentido da palavra. Sensibilizada, a veterinária me pergunta:
— Em que bairro o senhor está?
— Na Aclimação. Faz diferença?
— Então o senhor faça assim: volte a ligar para a Prefeitura, não diga que falou comigo, registre sua solicitação, pegue o número do protocolo que a atendente vai lhe dar. Daí, me telefone novamente, e eu poderei liberar a viatura para remover os animais. Sem esse número, o carro não pode sair.
Eu paro de tremer, me recomponho, agradeço muito e parto para minha Via Sacra, a lhe refazer os últimos quarteirões, já conhecidos. Em quinze minutos, tenho o número sagrado, os algarismos mágicos, a senha divina que fará com que os dois cérberos voltem para o inferno de onde escaparam. Telefono mais uma vez para a Carrocinha — o mais civilizado e coerente órgão público desta cidade demente — e passo a senha à bondosa Santa Veterinária que nos protege a todos, amém.
Agradeço, desligo, e vou à janela informar a vizinhança que, a esta altura, está aglomerada no pátio, debaixo de chuva, a ouvir minha gritaria telefônica. Antes que termine o relato que começo a lhes fazer, vejo meu vizinho, o dono dos cachorros, entrar pelo portão da rua, com cara de "perdi alguma coisa?".
Deve ser por isso que é proibido ter armas em casa. Da próxima vez, ligo só para a Polícia, e que se foda!

Aconteceu com o Branco Leone

23.2.06

“The same old places and the same old songs”

(Camiseta branca. Se elas soubessem o efeito que camiseta branca... É claro que ela sabe o efeito da camiseta branca, you idiot. Mas pelo menos podia não dançar daquele jeito... Yo, se a sua chance é zero, melhor ver a camiseta branca dançando do que não ver a camiseta branca dançando.) Curva do balcão, em uma era na qual uísque ainda constituía raridade em meu orçamento. O baixista, que acabara de crocar sua primeira entrada em dois anos de banda, paga uma rodada de cerveja. Brindes. Todo mundo meio que grita para superar o zumbido do set recém-encerrado -que ainda nos ocupa os ouvidos- e a música enlatada que vem da pista. Papo de músico: temos mais uma entrada. (Na pista, ela e a amiga ensaiam uma coreografia engraçadinha, e riem, riem: maconha, seria o meu diagnóstico. Ou, melhor, pior, nem sei: talvez alegria.)

Lentamente a banda se dispersa: xaveco, banheiro, fumar quantidade desumana da erva mardita no estacionamento do bar. Eu consigo espaço na última banqueta do balcão, encostada à parede, e me dedico a anotar diagramas de arranjos em um guardanapo de papel. De vez em quando alguém me cumprimenta, pede música. Mas em geral passo despercebido. (Bem que podíamos fechar meia hora mais cedo, hoje: amanhã, trampo, às sete e meia. Um dia, tocar foi a melhor coisa do mundo. Agora é só mais um jeito de zerar as contas.) Camiseta Branca e a amiga se aproximam do balcão, na diagonal oposta ao lugar que ocupo. (Nada de encarar, you idiot.) Continuo rabiscando o guardanapo, com aquela sensação paranóica de que alguém está me olhando. (Ela está olhando: melhor não agir como um idiota, you idiot.) Levanto os olhos, trocamos um sorriso. Ela e a amiga voltam para a pista. (O sentimento que vai definir o resto da tua vida, young padawan, é exatamente essa mistura de decepção e alívio que assoma quando você a vê se afastando: treasure it.)

Última entrada, longa: o dono do bar sempre pede meia hora a mais, caso as vendas de bebida continuem fortes por volta da uma da manhã. Camiseta Branca e a amiga dançam na beirinha do palco. (A cada vez que ela sorri, esqueço a letra. “Gold Coast slave-ship bound for cotton fields”, já cantei essa nhaca 750 vezes.) Quando o show acaba, restam sempre os mesmos dois grupos: os bêbados, que estariam ali mesmo sem música, um pouco mais felizes porque em noite de show o bar fecha mais tarde; e a macambúzia catigoria dos tentando-comer-alguém. Enquanto recolho guitarra e amplificador, Camiseta Branca e amiga, ainda sorridentes, rejeitam cinco abordagens. (Tá vendo, idiota? Rejeitar é o grande prazer das mulheres.)

No apartamento dela, saindo do banho às sete da manhã, já atrasado para o trabalho, peço uma camiseta emprestada. Sonolenta, ela aponta para uma gaveta. Visto a maior camiseta que encontro –branca-, e digo: “Se vocês soubessem o efeito que isso causa na gente...” Ela sorri com cara de quem sabe perfeitamente o efeito que isso causa na gente, estende os braços para um abraço e cai dormindo. O sol murcho de outono me recebe com a mais perfeita indiferença, lá fora.

Filthy McNasty

Ter medo de boiolice é coisa de viado.

21.2.06

CAIXA DE COMMENTS

As duas coisas aconteceram meio que ao mesmo tempo. Primeiro, os amigos imaginários dele, que até então viviam puxando a cueca para dentro do rego, fazendo biquinhos torcidos nos peitos da camiseta e enchendo com Bic azul os “o” dos trabalhos da faculdade, sumiram de supetão. Então lá estava ele no computador, concentrado – estranhando, sim, terem deixado sua cueca quieta – , após publicar um post com uma resenha do O Segredo de Brokeback Mountain, quando viu aparecer na caixa de comments:

O lance é que o cowboy lá pega o touro à unha mas depois leva unha no calcanhar, huahuahuahuahuahua.
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Posted by Siririca at fevereiro 14, 2006 09:28 PM

Ele começou achando coincidência logo aquele nick, e procurou o IP. Notou, intrigadíssimo, que o número era o mesmo do dele. Mais uns dois minutos e apareceu outro comentário:

Falando sério: a gente vê que Hollywood aprendeu a lidar com tolerância, indicando ao Oscar um filme com tanto sexo passivo.
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Posted by McLeod at fevereiro 14, 2006 09:32 PM

Apesar de “McLeod” parecer mais coincidência ainda, pelo menos o conteúdo do comentário o tranqüilizou – ainda que o número do IP também batesse com o dele. Não passou um minuto e ele viu aparecer:

É claro que tou falando do “Munique”, onde o Mossad toma na bunda e os terroristas levam no rabo, huahuahuahuahuahua.
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Posted by McLeod at fevereiro 14, 2006 09:33 PM

Claro, pensou ele, agora estava claro por que os peitos das camisetas andavam lisos. Mas não havia tempo para pânico. O lance era agir rápido. Chegou a redigir um comentário chamando Siririca e McLeod na regulagem e dizer que voltassem para a cueca dele, quer dizer, que aquilo não era lugar para amigos imaginários – mas ponderou: chamar os pichadores de amigos imaginários e estabelecer diálogo com eles pareceria, claro, um truque dos mais baratos para inflar artificialmente a caixa de comentários. Que leitor iria acreditar? Pensou melhor, ensaiou por uns instantes e digitou:

Bom, eu vi o filme, acho que ele tem seus acertos e defeitos, mas ao menos comprova a versatilidade do Ang Lee.
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Posted by Sofia at fevereiro 14, 2006 09:35 PM

Um minuto depois:

Ui. Viu aí, Siririca? Ele agora comenta os próprios posts. E com nome de mulezinha, pra não dar na vista.
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Posted by McLeod at fevereiro 14, 2006 09:37 PM

Pois é, McLeod. Agora arranjou uma amiguinha imaginária, também. Deve ter se viciado nisso. Não vai sobrar grana pro psiquiatra, huahuahuahua!
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Posted by Siririca at fevereiro 14, 2006 09:38 PM

Já era hora de intervir. Ele digitou:

Olha, McLeod e Siririca. Não sei quem vocês são, mas conheço muito bem a Sofia, que é minha colega de faculdade. E acho que seria o caso de deixar em paz quem quer comentar o post a sério. Se não for pedir muito, OK?
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Posted by Sofia at fevereiro 14, 2006 09:39 PM

Imediatamente:

Aaaah, McLeod, olhaí, o mané pisou na bola! Digitou o comentário mas esqueceu de apagar o nome da mina embaixo. Saiu Sofia de novo no nick! Todo mundo vai sacar que foi ele quem redigiu aquele comentário dela, huahuahuahua!
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Posted by Siririca at fevereiro 14, 2006 09:40 PM

Pois é, Siririca. E olha ele tentando agora corrigir a cagada. Tá indo trocar o nome dela no editor de comentários. Não deixa! Não deixa! Puxa a cueca dele!
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Posted by McLeod at fevereiro 14, 2006 09:42 PM

Caralho, McLeod, não dá mesmo, véi. Depois que eu me converti pra byte perdi a manha de ficar mexendo em coisa real, tá ligado?
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Posted by Siririca at fevereiro 14, 2006 09:43 PM

Olha, meus caros, vocês são a prova viva de que essa brazucaida que anda poluindo caixa de comentários é mesmo a escória da Net, e que faz a mesma coisa no Orkut. Pois podem sair de minha caixa de comentários, aliás do meu blog, porque se tem uma coisa de que não faço questão é pixador barato.
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Posted by Daniel at fevereiro 14, 2006 09:45 PM

Uia, Siririca, agora ele pôs o nick certo. Só que escreveu “pichador” errado, huahuahuahua!
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Posted by McLeod at fevereiro 14, 2006 09:47 PM

Pois é, e nem apresenta a nova amiguinha imaginária. Oi, Sofia. Você também já passou pela fase de puxar cueca?
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Posted by Siririca at fevereiro 14, 2006 09:48 PM

Olha, Daniel, como eu dizia ANTES DE SER INTERROMPIDA, acho o Ang Lee um cara muito versátil. Depois da pungência do “Tempestade de Gelo”, da exuberância de “O Tigre e o Dragão” e mesmo da puerilidade de “O Incrível Hulk”, acho que ele não decepcionou neste último.
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Posted by Sofia at fevereiro 14, 2006 09:50 PM

Woow. Olhaí ela gritando, rapaz! “ANTES DE SER INTERROMPIDA!” Não é uma amiguinha imaginária linda quando fica bravinha?
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Posted by McLeod at fevereiro 14, 2006 09:51 PM

Não, e você viu, McLeod? “Pungência”. “Puerilidade”. Uaaau. A mina tem o vocabulário mais enjoado que o nosso. O carinha tá caprichando cada vez mais na doidura aí. O próximo amigo imaginário vai ser professor de filosofia!
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Posted by Siririca at fevereiro 14, 2006 09:53 PM

Discordo um pouco da Sofia. Não vi tanta puerilidade no “Incrível Hulk”. Acho até que o roteiro remete bastante à dramaturgia grega sobre minar a figura paterna e domar a bipolaridade interna.
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Posted by Adelmo at fevereiro 14, 2006 09:54 PM

Ué, quem é esse Adelmo? Outro amigo imaginário? Virou festa?
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Posted by Siririca at fevereiro 14, 2006 09:56 PM

Er. Eu não sou amigo imaginário de ninguém.
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Posted by Adelmo at fevereiro 14, 2006 09:57 PM

Você conhecia ele, Sofia?
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Posted by McLeod at fevereiro 14, 2006 09:58 PM

Eu não.
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Posted by Sofia at fevereiro 14, 2006 09:59 PM

Ué, Sofia. Você também…?
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Posted by Daniel at fevereiro 14, 2006 10:00 PM

Caralho. O homem surtou.
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Posted by Siririca at fevereiro 14, 2006 10:01 PM

Despirocou.
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Posted by McLeod at fevereiro 14, 2006 10:02 PM

Hm. Bonito, meu nome. Sofia. Sofia. Gostei.
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Posted by Sofia at fevereiro 14, 2006 10:03 PM

Como assim, “bonito meu nome”? Esqueceu de qual IP você saiu?
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Posted by Daniel at fevereiro 14, 2006 10:04 PM

Caramba, e a mina é das nossas. Olhaí, McLeod.
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Posted by Siririca at fevereiro 14, 2006 10:05 PM

Chega aí, Sofia.
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Posted by McLeod at fevereiro 14, 2006 10:06 PM

Chega aí é o caralho! Aliás, vão à puta que pariu vocês todos! Siririca e McLeod, vou tirar esse link de comentários, vou fechar esse blog, vou desligar essa máquina da tomada e aí quero ver. E olha, levem essa Sofia junto!
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Posted by Daniel at fevereiro 14, 2006 10:09 PM

McLeod e Siririca, vocês me ensinam o lance da cueca?
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Posted by Sofia at fevereiro 14, 2006 10:10 PM

Posso ao menos prosseguir no meu comentário sobre o Hulk?
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Posted by Adelmo at fevereiro 14, 2006 10:11 PM

Olha, vão você e esse Hulk tomar no cu!!
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Posted by Daniel at fevereiro 14, 2006 10:12 PM

E ele desliga a máquina, com uma repentina, doce e latejante nostalgia dos dois bicos amarrotados nos peitinhos da camiseta.

Ao Mirante, Nelson!

Pessoas Amadas

Esse negócio de querer ser amado por todo mundo é coisa de gente que não é amada pela pessoa certa.

Liberal Libertário Libertino, por Alex Castro

20.2.06

A baixinha do canto escuro

Mamãe queria que eu fosse mulher
e que não chovesse nove meses do ano
e que papai a tirasse para dançar de vez em quando.
Mas era mais fácil amanhecer um dia com tetas
do que don Luis convidá-la para um bolero.

Há muitos anos minha mãe deixou de sonhar,
hoje aguarda a velhice como um último trâmite.
Essa mulher que em muitas manhãs
lavou e secou os pés que mais tarde
uma só vez dançaram com ela,
senta todos os dias nos degraus de sua casa
para olhar a dança vitoriosa da chuva
e para atender meus telefonemas,
cada vez menos freqüentes,
já nem sequer pode levantar-se
com o peso de tanta música morta nas pernas.

Luis Chaves,
tradução: maira parula

16.2.06

Blogs:

Há blogs que atravessam crises. Nada mais irónico. Os blogs são uma extensão das nossas crises. Toda a gente sabe que um bom blogger é, antes de mais, um ser excessivamente frustrado. A quantidade de textos que um blog produz é directamente proporcional à sua frustração. Sexual, na maioria dos casos. O blog é a nossa vida sentimental por escrito, ou a falta dela. Não há grandes teorias acerca do assunto, senão a mais puramente seinfeldiana. Se estamos a escrever, não estamos a ter sexo. Estivesse o velho Sigmund ao meu lado e corroboraria a minha tese. Um blog é um prolongamento do pénis. Não são precisos grandes estudos governamentais para retirar esta conclusão. Quanto menos sexo, maior a tensão acumulada e, consequentemente, maior o pénis. Se escrevemos menos, estamos apaixonados. Se escrevemos pouco, encontrámos a felicidade. Se não escrevemos, estamos a caminho do paraíso. Os maiores vultos da incapacidade sexual têm blogs. E escrevem mal, muito mal, cada vez pior e dão excelentes bloggers. Uma malograda vida sexual é uma abençoada vida assexual e um dos principais estimulantes da iconoclastia. Não é por acaso que nunca foi relatado um único episódio da vida sexual dos Waugh e Freud achava que George Bernard Shaw não compreendia o sexo. Um blogger é alguém que nunca fez sexo oral. Não é por falta de tempo. Nada disso. Deixemo-nos de minudências e enfrentemos a grande causa. É falta de oportunidade. Um blogger é um asceta.

(…)

Tiago Galvão Diário

11.2.06

Insight em um fim de tarde chuvoso voltando do supermercado depois de comprar cebolha e apetrechos para um macarrão família

O problema nunca foi voar.
O problema sempre foi cair.

Forsit

Cena de Esquartejamento.

É pela alcatra do animal fisgado que se inicia o carnejamento, a separação e a limpeza das partes. Como num festival de agulhas, realiza-se o corte primário, profundo, na anca direita. Sangue e detritos vão escorrer do buraco. Orgulhosos, os carneadores observam o regurgitar da vítima e espasmos. Dependurado na viga, de cabeça para baixo, o animal acaba-se em poucos instantes. É fino ver o pelego se desgrudando da pele, as vísceras que caem num balde com um som de blof! e a retirada do fel, líquido amargo guardado dentro da vesícula. Inicia-se uma exploração. A vida é trêmula. Os bichos são arquejantes. Os cascos traseiros, quando finda a carnificina, continuam amarrados um ao outro, separados do resto do corpo.

a maçã no escuro

Anhanhandava, o Menino com Soluço da Floresta

A diferença entre as criaturas mitológicas de outros países e as criaturas mitológicas brasileiras é que as primeiras têm poderes especiais e as segundas são só deficientes físicos. Se você visse um saci entrando no metrô se sentiria constrangido a dar o seu lugar pra ele - o que nunca aconteceria com o lobisomem, por exemplo, ou com o Drácula.

O Brasil é tão pobrinho de imaginação que quando quer pensar numa criatura miraculosa imagina um preto. Depois, num arroubo de fantasia, imagina que o preto não tem uma perna e usa uma touquinha. Depois imagina uma mula, mas é uma mula sem cabeça, coitada; e essa outra criatura terrível, um menino, mas que é um menino com os pés virados pra trás. Não sei porquê não imaginaram logo um velho com bócio ou uma dona de casa com vitiligo.

Na verdade eu queria inventar o mito brasileiro mais terrível: Anhanhandava, o Menino com Soluço da Floresta. À noite no mato pessoas em volta da fogueira ouviriam os soluços terríveis e misteriosos de Anhanhandava. Um deles gritaria “Prende a respiração e conta até dez!”, e Anhanhandava responderia “Não deu certo!”. Daí um deles daria um tiro de carabina para assustar a criatura e os soluços passavam.

Por isso o livro correspondente a “Drácula” no Brasil é “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, onde o monstro foi substituído por uma nordestina burra. Se Tolkien fosse brasileiro, toda a Terra Média seria povoada de gente de muleta ou que tosse sangue.

Alexandre Soares Silva

9.2.06

O som da fuga

“Eu não sabia que era tanto tiro, porra! Acertaram todo mundo, todo mundo morrendo. Um camelo, estômagos na cara, areia quente. Eu só pensava em sair dali. É igual… à hora de ejacular. Fugir. Quando aquela música…”

Entramos em Faluja às três horas da tarde. A camuflagem da cor do deserto, nem um fio de ar suspenso. Me lembrava da fazenda dos meus pais, me lembrava de Rebeca na festa, nem do meu cachorro, mais da mulher – sou bom com os bichos. Eu tinha uma guitarra, eu escutava meu pai falar da bandeira eu vi o Johnny Cash no Cassino Paraíso dizendo ser da pátria o meu sangue. E foi, não o meu. Entramos em Faluja para libertar os bárbaros dos bárbaros e tanta mulher eu não gostava de fazer aquilo, mas os negros com suas tatuagens de basquete faziam, eu vi uma chupar enquanto a baioneta dupla a pressionava. Eu tinha a Bíblia no bolso, aumentada no seu dobro, por Joseph Smith. Eu não tomava café. No meio da orgia, só tinha visto aquilo na Guerra nas estrelas, no filme quando pequeno, aquelas casas que subiam pelo chão. Salvamos as crianças do deserto. Todas no caminhão. Os velhos. Qualquer um de barba era imobilizado. M-16. M4-lança granadas. Como a arma pulava. Aranha menor – uma teia tatuada, amor na mão. Eu atirei em um que correu em minha direção, não entendia o que falava, seria aquela, com os negros da América dourada, a sua filha? Mãos para o alto! Só deu tempo de uma vez, lancei então uma granada. A Bíblia no meu bolso. Eu me lembrava quando comprei a minha guitarra, o Metallica cuspindo na gente em Desmoines. Eu tocava ela no ar. O cantor fez um papo-firme para mim jogando cerveja na minha cara. Queria dormir sem areia. Eu e os amigos abraçados. Isqueiros. Depois que atirei, veio aquele silêncio que o fogo traz. Não sentia mais calor. Sentamos na terra devastada. As crianças estavam salvas, as mães e os velhos não. Os homens, alguns animais, deitados, imensos, ainda segurando suas armas, na verdade enxadas. No relatório, o quê, capitão? Ninguém viu, soldado. Antes eles. Em uma fonte, letras deste Deus que não era o meu, mas dizem que era o mesmo anjo que falou com ele. Como? A Bíblia ou me enlouquece ou me tira daqui, por favor, meu Deus. Me deixe um homem, e não morrer pelas mãos deles. Labão decaptado por Néfi travestido, a mesma voz. Caminho, abro portas. O silêncio retardado que a falta de vida traz, um, dois, outro bezerrinho. Começo a relaxar. Engatilho. Dedo fora do cão. A tropa faz um círculo. Que brilho! Um cone surge no céu, sinto uma picada, mil moscas a revoar, que buraco. Caio. Som de metralhadoras. Debaixo da terra as balas nos comiam. Uma emboscada. Harry, Santino, e o negro, ainda fechando as calças, caem rastejando. Turbantes pela areia. Se movem rápido. O rosto do capitão cai no meu colo aberto. Não grito, rastejo para trás da fonte d’água tentando me proteger. Engatilho. Bato com o rifle na perna. Funciona, porra, funciona! Take a look to the sky just before you die! – aquela música ao longe misturada ao brilho do sol, da faca e do medo de morrer – igual um bicho acuado, uma vaca inseminada, estes meus olhos lentos. Cercados. O coturno cheio de areia. Cuspo uma bola vermelha, uma faca entra nas costas, sinto sair pela ponta rasgando as páginas da Bíblia, a capa de couro, o sol eterno me possui, idioma estranho: “Razi, Haram Haram!”, brincam com a minha carcaça, eu não consigo mais respirar, levo uns chutes, não sinto, como fosse um modelo de sonho, um cavalo. O árabe se joga por cima de mim. Fazem uma roda, querem me matar como um cão, lento. Vejo dois ajoelhados rezando perto das mulheres mortas, o véu em pedaços que me cobre, então escuto a música mais alta. Súbito. Eles correm, chegam os helicópteros com a bandeira listrada, estremecendo o deserto, trazendo aquele vento. O videoclip imitado não precisava ser tão igual, a areia se levanta, a música alta os assusta, e enquanto o sargento médico enfia bolas de sangue no meu braço com uma caneta, o furo na garganta me ajuda a respirar. Surdo. O mundo se apaga em mim. Peço perdão. Se a gente pedir, Deus ajuda, eu garanto. Mãe? Mãe? Ela não escuta. Reza, mãe. Levado para o hospital em Bagdá, vejo a estátua de Satã cair. Herói. Não. Quando voltar para casa, só eu vou me lembrar. Incógnito. Passeando pelo inferno dos supermercados.

Jorge Cardoso em Fakerfakir

A casa muda

A casa muda, paredes e móveis e plantas que não existem. O corredor que é uma garganta e um leito seco de rio ancestral onde há a paz das navegações esquecidas, onde há o rastro dos que não voltaram. Meus pés estão imersos em água, minhas mãos afundam nas poças e meus olhos são apenas meus olhos submersos. Tenho de cavar rios, tenho de levar água, tenho de explorar poços e charcos e achar a memória dos passos. Tenho que escoar, vazante, e caber nas trilhas, entre as paredes da casa, represa de águas, que não existe.


Não Discuto, por Patrícia Antoniete

Por que você merece...

- Quer comprar maça, ameixa?
- Quanto as maças?
- Dois sacos por cinco.
- Um saco?
- Dois por cinco, promoção. Pra terminar o carrinho...
- Eu só quero um.
- Leva dois, pro marido.
- Eu não tenho marido.
- Pro namorado, então.
- Eu não tenho namorado.
- Dois sai mais barato...
- Eu não tenho ninguém! Sou uma mulher avulsa, sozinha! É só um.
- Um fica por três.
- Ótimo, nem dinheiro eu tenho.
- Eu troco cinqüênta.
- Não quero mais. Da próxima vez o senhor não discuta com a cliente.
- Mas já que não tem namorado, vamo conversar...

Megeras Magérrimas

A escolha

De Nelson Botter.

- Vai, escolhe, em qual delas eu atiro?
- Não, por favor, não faça isso...
- Se não escolher, eu mato as duas!
- Olha, vamos conversar, não posso escolher...
- Escolhe logo, seu merda. Atiro na sua esposa ou atiro na sua amante?
- Quanto você quer para esquecermos tudo isso? Pago em dólar.
- Vou contar até dez. Se não escolher uma, mato as duas. Dez!
- Pára com isso!
- Nove.
- Não posso...
- Oito.
- Isso é absurdo.
- Sete.
- Olha, faz o seguinte, me mata, tá bom?
- Seis.
- Prefiro eu morrer a ter que escolher uma das duas.
- Cinco.
- Santo Deus, você está falando sério mesmo?
- Quatro.
- OK, OK...
- Três.
- Me perdoa, nenê.
- Dois.
- A amante...
- Um.
- Atira na minha amante. Poupe minha mulher.
- Por que a amante?
- Porque esposa a gente só tem uma, né? Amante arranja-se aos montes.

Os quatro ficaram se olhando após a resposta. Três olhares indignados e apenas um confuso (o do marido, é claro).

- Como você é cretino! - falou o assassino. - Depois dessa quem merece essa bala é você!

Bang! Tiro certeiro na testa do marido.
Plac, plac, plac! Eram as palmas das duas mulheres ao assassino.

:. Blônicas .:

8.2.06

perola do beirola

Tesão é mulher com inteligência no lugar certo.

jair beirola

6.2.06

Bretodeau? Bredoteau?

Nunca me esqueci dela, nunca me esqueci que ela estava lá. Remexendo coisas velhas, deixadas no escuro dos armários, encontrei-a: uma caixa de papelão. Dentro dela, filmes. E mais filmes. Filmes 8 e super-8. Filmes mesmo: rolos, uma dúzia deles, grandes e pequenos, em preto-e-branco e coloridos. O primeiro, datado de 1960. Haveria ali, enroladas dentro daquela caixa, quase duas horas de imagens em movimento: o registro em película de parte importante — a ponto de merecer ser filmada — da vida de meu pai. Na caixa ao lado, o projetor. E todas as suas impossibilidades. Uma máquina do tempo que, por causa dele — o tempo — talvez estivesse emperrada. Uma máquina do tempo, sim, mas talvez com a lâmpada queimada.
A máquina estava mesmo emperrada. Mas a lâmpada funcionava, o que já era um bom começo. Horas debruçado sobre suas entranhas expostas, e descobri a razão da paralisia: uma correia de couro endurecida, quase fossilizada. Libertada a correia, não foi difícil fazer o projetor voltar à vida e, pouco depois, eu assistia, de boca aberta, eu mesmo a correr e a gritar pela parede, em estranho silêncio — os filmes são mudos. E vi a mim no meu primeiro registro em película: minha mãe e eu, na piscina do clube, uma lombriga branca de calção e cabelos muito claros, olhos apertados pelo sol furioso do verão seguinte ao meu nascimento. Em outros filmes, outras coisas: o apartamento onde nasci, a rua, o restaurante, meu primeiro dia de aula, o navio para Portugal, a família de lá, amigos e parentes, os cachorros, e eu crescendo, de filme para filme. Os últimos registros, já em super-8, são viagens ao Mato Grosso em que não apareço: já devia andar a correr em outras películas.
Em todos os filmes, percebe-se aquilo que é, num só tempo, Graça e Miséria da espécie humana: o poder da Genética. Aquela criança que corre pela parede, em que tempo for, é igual aos filhos daquela criança, trinta anos antes ou depois. Aquele homem, que é o pai nos filmes, se parece com o homem que hoje o assiste.
Aquele homem que é o pai está morto. E a máquina do tempo mostra o óbvio ao homem que o assiste: o tempo dá voltas, o tempo é um carretel de filme. Seja filmado ou não.

Branco Leone: um blog sem conteúdo

4.2.06

AS MULHERES QUE PERDI

Perdi Alice porque ela me achou baixo. Perdi Lisa porque minha língua mancava na infância. Perdi Rita porque era seu melhor amigo. Perdi Gisele para meu melhor amigo. Perdi Renata porque ela mudou de estado. Perdi Ivana porque escrevi cartas de amor e não tive coragem de mandar. Perdi Maria por um apelido. Perdi Fátima quando pichei o muro de sua residência. Perdi Caroline porque fumava. Perdi Sandra ao perder seu livro de Português. Perdi Débora ao pedir cola. Perdi Rosa pela asma. Perdi Cristina pela catapora. Perdi Rose porque troquei de escola. Perdi Josélia por não aprender inglês. Perdi Viviane porque não jogava vôlei. Perdi Marisa na parada de ônibus. Perdi Carla ao buscar cerveja. Perdi Cristina quando demorei a dançar. Perdi Cristiane por um surfista na praia. Perdi Estela no fim de uma festa. Perdi Bruna ao atravessar a rua. Perdi Luciana por não telefonar. Perdi Laura ao me casar. Perdi Ângela por ela estar casada. Perdi Márcia por não insistir. Perdi Mariana por insistir. Perdi Sonia na fila do banco. Perdi Marta por não puxar conversa. Perdi Cíntia ao ir ao banheiro. Perdi Lisiane por sono. Perdi Lisa por ressaca. Perdi Manuela pelo mau humor de manhã. Perdi Amanda por insegurança. Perdi Janete por excesso de confiança. Perdi Bárbara em um filme polonês. Perdi Bianca pela falta de cabelos. Perdi Fernanda porque ela não gostava de barba. Perdi Janete pelo jogo de futebol. Perdi Dulce por ciúme. Perdi Teresa por duvidar dela. Perdi Gabriela por criticar suas músicas. Perdi Fabrícia pelo nome parecido. Perdi Paula ao odiar seus pais. Perdi Deise para meu irmão mais velho. Perdi Cátia para meu irmão caçula. Perdi Denise ao não segurar sua mão. Perdi Ester pelo atraso. Perdi Flávia porque ela queria ter filhos. Perdi Tamisa porque eu queria ter filhos. Perdi Tânia quando ela trocou os graus de seus óculos. Perdi Joana para sair com os amigos. Perdi Milena por fazer pouco caso de sua dor. Perdi Geórgia ao comer de boca aberta. Perdi Regina pela solidão. Perdi Vitória por fofoca. Perdi Jordana por não suportar discutir o relacionamento. Perdi Lídia porque ficava em casa. Perdi Beatriz porque não voltava para casa. Perdi Elisa porque envelheci a fé.

Perdi mulheres pelas dúvidas que recebi de minha mãe e deixei para resolver depois. Perdi mulheres pela teimosia em antecipar as falas. Perdi mulheres por acreditar que eu amava o suficiente. Nunca é suficiente. Perdi mulheres ao mentir que não trairia. Perdi mulheres para me fazer de vítima. Perdi mulheres porque em algum momento não estava em mim e coloquei travesseiros debaixo da coberta e fingi dormir enquanto fugia.

Perdi mulheres por descuido. O homem é um descuido.

.:. Fabricio Carpinejar .:.

Like they do on the Discovery Channel

Das oito mesas do café, apenas duas estão ocupadas, no começo de uma tarde hibernal de sábado. Três moleques asiáticos com cara de calouros na universidade vizinha conversam sobre esportes, em uma delas, enquanto uma discreta, sexy e bonita thirtysomething lê um livro e de vez em quando anota alguma coisa em um desses ridículos caderninhos que só mulheres carregam, na mesa ao lado.

Os meninos de vez em quando reduzem o volume de conversa ostensiva e cochicham alguma coisa entre eles, lançando olhares cobiçosos para a leitora, que continua absorta. A barista me serve um segundo espresso, e sussurra: “Eles estão tentando tomar coragem para falar com ela há 45 minutos”.

É o tipo da coisa que a gente nunca veria no canal Discovery –três coalas discutindo qual é a melhor maneira de abordar uma onça. Da minha banqueta, luto por impedir que manifestações de instinto paternal ou solidariedade masculina interfiram com a observação –afinal, a regra sacrossanta dos documentários é sempre deixar que a natureza siga seu curso, nesse caso específico despenhadeiro abaixo.

Os coalas dão o bote aproveitando o momento em que ela desvia os olhos do livro e olha para o balcão, à procura da garçonete. Ela sorri e inclina a cabeça em cumprimento milimétrico aos meninos que estão praticamente acenando para ela. Um deles se levanta, dá dois passos, e pronuncia: “Professora X.” Ela sorri: “Mr. Kwang”.

Coalas gaguejando são um espetáculo triste demais até pro canal Discovery. Permitam-me, portanto, lançar discreto véu de silêncio sobre os cinco minutos seguintes do episódio, e dizer apenas que o coala aventuroso tropeçou três vezes no metro e meio do caminho de volta à sua toca.

Em mais 15 minutos, um cinqüentão gordinho chega esbaforido, beija e abraça a professora gostosa, pede desculpas pelo atraso. Ela sorri lubricamente, e os dois saem abraçados do café. Os três coalas suspiram, um tanto frustrados e um tanto satisfeitos porque escaparam vivos. Um deles primeiro olha em volta pra conferir se tem alguém prestando atenção, e a seguir sopra um beijo para o lugar abandonado pela majestosa felina acadêmica.

A natureza é uma merda.

Filthy McNasty