30.3.05

BRINQUEDOS PELA CASA

Não tomei cerveja com o meu pai. Não conversei sobre mulheres com o meu pai. Não fui ao cinema com o meu pai. Não visitamos a Expointer. O máximo de aventura que enfrentamos juntos foi quando ele estacionava em local proibido na rodoviária ao pegar os jornais e me deixava esperando no carro. Suportava a seqüência de tormentos: as buzinadas de quem vinha atrás, o pisca ligado eternamente e o pavor da multa do guardinha. Não tive nenhum papo adulto ou cabeça com ele. Ele não me indicou caminhos, não reprimiu escolhas. Não assinava meu boletim. Não autorizava minhas viagens escolares. Não me ensinou história, literatura, português. Não me explicou o sexo, a única vez que chegamos perto do assunto foi quando comentei que seria pai e já era tarde demais. Ele saiu cedo de casa (ao menos para mim), quando tinha oito anos. Não joguei futebol com meu pai e seus colegas contaram que atuava de centroavante. Queria ter jogado ao lado dele, mesmo que seja para reclamar da falta de passe. Ele escrevia muito e o escritório vivia trancado, impraticável para corridas e pega-pega entre os irmãos. Não podíamos entrar pela frente da residência. É óbvio que arrumava uma escada para espiar o que ele anotava pela janela. É óbvio que não enxergava nada de diferente.

Quando caminhava pela calçada, meu pai andava com as mãos atrás. Como é sábio andar com as mãos atrás! Tudo o que falam delem, eu paro para escutar como quem necessita reconstituir a vida que não teve. Amigos, inimigos, amores e desamores. Ouço qualquer história dele com ardor e paciência. Compraria histórias e palavras de meu pai. Meu pai é uma agenda que não foi usada. Por isso, não reclamo quando recolho os brinquedos de meus filhos pelos corredores. A maioria xinga a bagunça, não eu. Eu me alegro. Posso estar cansado, acabado, sem reservas e arrecadarei um por um dos brinquedos com dedicação. É noite alta, vou recolhendo os destroços e colocando os bonecos na prateleira. Faço um altar, distribuindo os anjos de madeira, de palha e de pano nos degraus das arquibancadas. Dobro as roupas nas gavetas. Organizo os carrinhos, sou capaz de escutar as vozes dos livros, esbarro em algum brinquedo eletrônico que quase acorda a vizinhança. Às vezes me perco em admiração pelos filhos. Entro em um transe, acionado por uma expressão nova, um fraseado diferente, uma pergunta esperta. Permaneço quietinho diante deles, mexo seus cabelos, como que colorindo desenhos dentro dos traços. Eles pensam que estou distraído. Ah se soubessem que presto atenção, tanta atenção que me disperso de mim. Só neles. Ausente enfim de mim.

.:. Fabricio Carpinejar .:.

28.3.05

A CADA UM O QUE É SEU

Você fala relíquias de cristal; ele ouve caixa solta carroceria de madeira. Você tem a voz entre as mãos de quem colheu palavras a noite inteira, escolheu frases uma a uma, ensaiou em inumeráveis rascunhos de memória o melhor arranjo; ele tem ouvidos de grandes precipícios, latas de lixo, esquecimentos, escombros, vasos partidos. Você estende os braços no tom de quem pede licença e quase suplica, ele ouve como quem vira as costas e dá de ombros, fazendo pouco do muito que você acha que oferece. Você encadeia assunto, explica ausência, tenta ser engraçada. Ele cospe monossílabos, descarta coroços de frutas que ele nem sentiu o gosto.

Então você desliga o telefone, as pernas, os braços, os olhos, as mãos, a voz e vai chorar agachada, soluços mudos, num canto do banheiro.

Megeras Magérrimas

Hey Julie,

Os filhos que eu estou me recusando a ter, hoje, me enlouquecem mais do que seria possível se eles tivessem vindo ao mundo (não, eu nunca precisei fazer um aborto. E não que eu não o fizesse se achasse necessário, mas os acidentes nunca aconteceram, eu sempre morri de medo de engravidar e sempre fui neurótica com sexo sem proteção. Então não tinha mesmo como rolar... Acho. Ou foi isso ou minha brincadeira de dizer que sou estéril é real.).
Engraçado, logo depois de ler seu comentário eu tive que sair para fazer uma endoscopia (pra variar, meu estômago...). Antes de qualquer procedimento médico, a atendente queria saber onde estava meu acompanhante (é impossível fazer uma endoscopia sem ter alguém pra te carregar pra casa depois do exame). Eu disse que ele estava estacionando o carro e ela perguntou o grau de parentesco que havia entre nós. Respondi, ela anotou no prontuário e não parei mais de me perguntar o que aconteceria se eu estivesse sozinha, se não pudesse dispor do tempo de alguém pra me acompanhar em uma hora dessas e, pra piorar, pensei sobre o que você escreveu. Me vi velha, abandonada pelos parentes, louca da alma e da cabeça, sozinha no coração (como sempre me imagino quando penso sobre o pior do futuro) e, dessa vez, sozinha na sala de endoscopia, sem ninguém pra me guiar depois do exame (sim, porque eu sei que vou fazer endoscopia a vida inteira e se eu ficar velha e sozinha não vão me deixar fazer exame nenhum...). Tudo porque eu não quis ter filhos. Foi uma merda que durou pouco graças ao baque do liquidinho rosa abençoado (eu adoro a sonolência que aquela coisa dá. Só aquilo pra me fazer esquecer do que a minha vida pode, um dia, vir a ser.).
Não sei o preço que eu vou pagar por essa resistência a filhos, mas sei das estranhezas que ela tem causado nos últimos anos, dos surtos esporádicos, das dúvidas infinitas e da tristeza crônica que ela gera. Sei o quanto tem sido difícil arcar com a decisão de me rebelar contra minha natureza, meu corpo, contra as coisas que eu desconheço. Não sei mais se estou certa como sempre achei. Ainda sinto meu egoísmo transbordando quando penso que preciso de uma outra vida para dar sentido a minha. Não acho justo. Por mais que minhas crenças me enlouqueçam, não acho justo.
Não faz muito tempo me vi soluçando feito adulto que engole o choro, só porque tinha mexido no email-me e escrito (sem querer) que já me peguei pedindo para que o destino deixasse algumas de suas crianças na porta da minha casa. "Algumas" foi a única parte do pensamento que me fez parar de chorar para rir um pouco de mim mesma. Questiono meus genes, temo pela escolha paterna, tenho total desprezo pelas crises de origem dos adotados e rezo para ter a chance de criar não uma, mas "algumas" crianças (mesmo que elas não fossem minhas de sangue, mesmo que elas crescessem e surtassem com as crises estúpidas dos adotados).
De verdade eu me odeio nessas horas. Eu sei que seria uma boa mãe. Não dá pra ser uma mãe ruim depois que inventaram o Discovery Healt... E eu adoraria ter filhos... alguns filhos, uma renca de filhos. Adoraria ter o Thor, o Odin, o Bragi, o Apollo, a Gaia, a Vênus e a Alethea (toda garota pensa nos nomes. Me deixe!) E talvez eles fossem realmente a minha salvação, mas aqui dentro de mim, nunca deu pra arriscar. Acho que é porque eu não suportaria saber que eu lhes daria a vida, mas não teria como evitar que eles conhecessem a morte. Acho. Acho mesmo sem querer achar mais nada sobre essa história de ter ou não ter filhos. De qualquer forma minha querida Julie, teu conselho é um ótimo conselho para mulheres que queiram manter a sanidade, a casa cheia e garantir que sua endoscopia seja feita. Obrigada por querer o meu bem, mas algo me diz que meu tempo acabou.

Licor de Marula com Flocos de Milho Açucarados

Uniformes

Calça legging preta, camiseta branca folgada, meias brancas, tênis importado caríssimo, cabelo preso, rabo-de-cavalo, boné, óculos escuros, yorkshire; Costume escuro, camisa branca, gravata azul clara; Biquíni, havaianas, tatuagem na nuca, piercing no umbigo, banana boat; Bermuda larga, camisa de time de futebol, tênis surrado, meias furadas; Vestido longo, preto, decotado, fenda lateral, sandália preta de salto alto e fino, conjunto de colar e brincos de platina; Calça jeans rasgada, camisa preta de banda heavy-metal, cabelos compridos, coturno; Óculos quadrados de aros pretos e grossos, camiseta sem estampas, calça jeans escura, all-star; Vestido florido, chinelo, carrinho de feira; Batina e cueca do Mickey; Hábito e calcinha de vó; Camisa azul clara, manga comprida, camiseta branca por baixo, calça cáqui, sapatos e cinto no mesmo padrão marrom escuro; Camiseta escura por cima de camisa branca de manga comprida, calça jeans, conga, óculos escuros de lente amarela; Calça capri, tênis sem meias, camiseta colada no corpo; Bicicleta, bermuda, tênis, coleira e pit-bull; Automóvel importado e poodle no vidro traseiro, passeando no tampão do porta-malas; Pick-up e rottweiler na janela do passageiro; Sunga, touca, piscina; Espartilho, meias 7/8, ligas, calcinha fio-dental, salto agulha, tudo vermelho; Calça jeans, camiseta, bota, cinto, cabelo, tudo preto, pele claríssima; Camiseta regata, short, tênis; Sapato náutico sem meias, bermuda cáqui com cinta da cor do sapato, camisa branca por dentro da bermuda; Saia branca, camisa pólo branca, meia branca, testeira branca, tênis brancos, toalha branca, raquete roxa; Calça jeans, tênis de fazer trilha, camiseta lisa por cima da calça; Blusinha, calça jeans, sandalinha, bolsa cara, chapinha; Camiseta vermelha, calça jeans velha, tenis, grito de guerra...

...Seja ninguém na multidão.

bico de pena

27.3.05

DE SPAMS E SEMÁFOROS

Qual a diferença entre os spammers que entopem sua caixa postal com duzentos emails por dia e os entregadores de folhetos nos semáforos? A sem-cerimônia pelo menos é a mesma – você baixa sua caixa de mensagens (no primeiro exemplo) ou abaixa o vidro da janela (no segundo) e cai aquele dilúvio de propaganda em seu colo. Melhor dizendo – há uma diferença, sim. Os spammers, protegidos pela falta do contato vis-à-vis, são bem mais desaforados. Já imaginou se o conteúdo dos folhetos entregues nos semáforos viesse com esse atrevimento?

Você chama de volta o sujeito que acabou de jogar um panfleto em seu colo:
– Ei, cara!
– Fala, chefia.
– Esse folheto aqui que você me entregou: “Enlarge your penis”.
– Ah, doutor, é a última tecnologia pra turbinar o amigão aí. Coisa dinamarquesa, e…
– Não, não é isso. Você por acaso acha que eu tenho o pau pequeno?
– Como, chefia?
– Isso mesmo. Eu tenho cara de quem tem o pau pequeno?
– Imagina. Eu só entreguei o folheto pro caso do distinto precisar e…
– Não, não foi. O sinal fechou e você não saiu entregando pra todo mundo, não. Você foi olhando um por um dos motoristas, antes de entregar. Qualé, minha cara entrega? Você acha que meu pinto é verruga?
– Não, chefia. É que ele tava abaixado, e…
– Como, abaixado? Você queria que eu dirigisse de pau duro?
Ele aponta:
– Não, doutor. Eu tou falando do vidro do carro. Ele tava abaixado, então eu vim e entreguei o papel.
E antes que o pau (grande ou pequeno) quebre, você puxa o sujeito pela gola, olha no olho dele e sussurra:
– Cartão de crédito?

No próximo semáforo, pimba: outro entregador joga em seu colo um panfleto vendendo Viagra abaixo da tabela. Você encara o spammer e:

– Escuta. Você tem autorização pra vender esse remédio a esse preço?
– Ih, chefia, o problema é preço? Não seja por isso – e ele estende outro papel: - Aqui tá um método de ganhar dinheiro sem sair de casa. O distinto trabalha no computador, umas duas horas por dia, e pode tirar de de 2.000 a 8.000 reais por mês ! Em pouco tempo o doutor pode comprar Viagra, Cialis e Levitra à vontade sem reclamar do preço!

ao mirante, nelson!

Milagres

Não sei bem como a história começou. Quando cheguei, já estava no auge, mas não demorei muito pra identificar os personagens, em meio à gritaria e à multidão que se formou pra assistir. Dois guardar municipais, um vendedor de livros usados e um transeunte participativo.
Parece que o vendedor de livros usados estava no seu local de trabalho - a calçada - exercendo seu ofício diário, que é exatamente vender livros usados na calçada. Uma atividade que, aliás, tem toda minha simpatia. Então estava lá o vendedor quando chegaram os dois guardas municipais que, suponho, tentaram recolher a mercadoria ou o próprio vendedor das mercadorias. O vendedor reagiu no melhor estilo daqui-não-saio-daqui-ninguém-me-tira e iniciou uma discussão, tentando convencer os guardas que não estava comerciando produtos roubados ou falsificados. Os guardas pareciam não se convencer com os gritos e é aí que o transeunte se torna participativo, gritando repetidamente e o mais alto que conseguia em defesa do vendedor.
Foi nesse momento, quando o circo já estava armado, que eu cheguei. A tempo de assistir o vendedor ficar cada vez mais irritado e aumentar a intensidade dos gritos. Os guardas, a essa altura, já tinham a antipatia total da platéia, incentivada pelo participativo. E a cada vez que o vendedor gritava a palavra "livros", ele agarrava os livros e jogava pro alto, com toda força. Não tá vendo que são livros? (um punhado pro alto) Nunca viu um livro não? (mais um punhado) Nunca leu na vida, né? Nem sabe o que é um livro! (outro punhado, dessa vez com mais força, fazendo a multidão desviar do impacto) Fugiu da escola, né? Por isso que virou guarda! Nem sabe identificar um livro! (mais livros pro alto).
Mal acreditei no que estava vendo. Seria a resposta às minhas orações, se eu fizesse orações. Uma chuva de livros.
E a gente achando que milagres não acontecem.

bocozices

Eu, o morcego e o quartinho dos fundos

Ontem à noite eu fui pro Pelourinho ver uma amiga cantar. O show foi 10, ela arrasou, eu dancei e voltei com os pés e as pernas doídas pra casa, sonhando com minha cama, ca-la-ro.
Quando enfim cheguei em casa, entrei pela porta dos fundos já que não tinha a chave da porta da frente comigo. Entrei pela área de lavar roupa, fui pra cozinha, acendi a luz do recinto, olhei pro corredor quando... vooooooooouuuum! Um objeto voador não identificado passou com toda a velocidade. "Minha nossa senhora! É um m-o-r-c-e-g-o!".
Então resolvi ser paciente. Fiquei lá na porta da cozinha vendo o animal voar por toda a casa, entrando nos aposentos que se encontravam com a porta aberta e voltando para o corredor em seguida. Sem pausas nos seus vôos turísticos por esta residência, jamais ele se cansava, apesar de toda uma torcida da minha parte. Tudo que eu queria era que ele desse uma pausa, escolhesse um cantinho legal pra descansar, para assim eu poder chegar à última porta do corredor sã e salva e deitar na minha cama.
Esperei, esperei e nada. Claro que às vezes ele ameaçava entrar na cozinha e eu fechava a porta com direito a gritinho e tudo. Meu pai, minha mãe e Josi, que dormiam o sono dos justos, jamais acordaram. Pensei em pegar meu celular e ligar aqui pra casa prá ver se painho vinha me resgatar. Pensei em atravessar o corredor engatinhando, mas me faltou coragem. Pensei em pegar uma vassoura e usá-la como arma protetora até eu atingir meu destino, mas não consegui pôr o plano em prática.
Cansada da espera e de toda a noite que tinha acabado de desfrutar, cedi. Fechei a porta da cozinha e fui dormir no quartinho dos fundos: o quarto mais abafado da casa, sem ventilador, com uma cama sem coberta. Dormi com as lentes de contato, roupa da festa e suja.
E a pergunta que não quis calar dentro da minha cabeça durante toda a madrugada: "Terei eu coragem de me levantar para ir ao banheiro de noite de agora em diante sabendo que o morceguito pode vir visitar meu lar?".
Well, suspeito de que precisarei providenciar um pinico.

além das aparências

25.3.05

Personalidade

Acabei de ler um livro que me deixou com vontade de fazer faculdade de história.
Quando criança, fiz balé porque a minha irmã fazia.
Saí do balé e fiz piano, copiando o que minha irmã fez.
Entrei na aula de pintura em porcelana incentivada por umas amigas, que também entraram.
Fiz vestibular pra farmácia, porque um dos meus melhores professores do colégio era farmacêutico, e falava muito bem do curso.
Cansei. Decidi ter personalidade. Só não sei em quem me inspirar.

admirável blog novo

Vocabulário

A irmã, pré-adolescente, ouvindo Charlie Brown Júnior:
- Sei que isso tudo é verdade mas eu quero que se FODA essa PORRA de
sociedade!
O irmãozinho, atento, vira-se pra mãe e pergunta:
- Mãe... o que que é "sociedade"?!

mothern

Mínima máxima II

Eu tenho memória. E melhor: tenho do que lembrar.

bloggete

Contrate Ruy Goiaba para o seu casamento

Álbuns e vídeos de casamento estão entre as maiores fontes de inspiração do puragoiaba, embora sejam, ao mesmo tempo, humilhantes. Sabe lá o que é constatar que, por mais que você se esforce, jamais conseguirá atingir aquele nível transcendental de cafonice? Há, por exemplo, o casal que contrata uma dupla de estatuístas para sua cerimônia e posa, braços entrelaçados e taças de champanhe na mão, ao lado dos Neros inteiramente pintados de cor-de-cobre, da toga à coroa de louros. Há o vídeo que mostra a transformação de outro casal, em plena valsa, na Bela e na Fera do desenho animado. Há, ainda, a promoter que oferece uma festa com malabaristas e engolidores de fogo, mas não explica se o preço inclui as roupas de palhaço para os noivos. E por aí vai.
Confesso que estou louco para entrar nesse mercado. E já tenho algumas idéias interessantes. Todo casal que fizer questão de se casar ao som de "Assim Falou Zaratustra" receberá de grátis um lindo vídeo em que a noiva, no instante de jogar o buquê, se transformará, pelas artes da fusão cinematográfica, no macaco lançador de osso de "2001". E o instante em que os amigos do noivo cortam sua gravata será sutilmente intercalado com algumas cenas de "O Império dos Sentidos". Vai ficar bem bonito.

pura goiaba

Armamentos da infância e pré-adolescência

Nunca fui muito chegado a armas. Ao contrário, sempre tive medo. Claro que já me diverti com espingarda e revólveres de chumbo, principalmente na época em que surgiram as famosas “armas de pressão”, que eram verdadeiras réplicas de revólveres.
Depois, isso foi proibido e a brincadeira acabou.
Mas houve um outro tipo de armamento. Não era tão fodão quanto armas de chumbinho, mas também davam trabalho. Vejam só:

Arco e Flecha
Arco de plástico, flechas também de plástico, com ventosas de borracha na ponta. Hoje, levar uma flechada daquela talvez faça cócegas, mas na época, com uns 5, 6 anos, doía pra cacete.

Revólver de Ventosas
Essa é digna de filmes. Não sei se mais alguém tinha tal artefato. Seguinte: era um revólver, com capacidade para QUATRO projéteis com ventosas na ponta. Você atirava um, girava, atirava outro etc. Uma espécie de “tambor” com quatro tiros. Doía.

Metralhágua
Não doía, mas também não era legal levar uma jorrada de água no meio da cara. Além de molhar, havia o “fator susto”. De fato, não havia riscos à saúde da vítima, mas sim MUITOS RISCOS aos que atiravam água em pessoas mal humoradas.

Atiradeira
O popular estilingue, ou bodoque, tinha uma versão toda fodona. Tinha até um metal que apoiava na parte interna do cotovelo, além de uma super tripa-de-mico da porra. A pedra parecia uma bala. Era ideal para detonar lixeiras e vidraças a uma distância segura para correr feito o Carl Lewis, porque os donos das casas não viam pelo lado lúdico.

Zarabatana e Variantes
Trata-se daquele caninho pelo qual passa um pequeno dardo. Não sei se é de origem indígena, acho que sim, sei lá. Você coloca na boca, mira e sopra, fazendo com que o projétil atinja a vítima. Não tínhamos a do Rambo, mas sim uma versão com caneta bic e papel com cuspe.

Super Bola de Papel
O normal era amassar uma folha, formando uma pequena bola, para atirá-la na cabeça de algum panaca. A “super bola”, por sua vez, não era lá algo muito normal. Amassávamos várias folhas, passando durex ou fita crepe, e daí colávamos camadas e camadas de outras folhas, sempre as fixando com fitas adesivas. Eram verdadeiras balas de canhão.

Elastiquinho
Um simples elástico de borracha, desses de escritório, passado de certa forma nos dedos, servia para atirar, com força, pedaços de papel dobrado. Era ideal para salas de aula. Quando algum bagre tentava atirar, era normal escapar o elástico e o papel continuar na mão.

Arma com Bob
O famoso bob de cabelo, com uma bexiga, atirando feijão ou milho. Parece que não é nada, mas de todas é a mais perigosa. Arde pra caralho. Fora quando algum sem noção pegava grão-de-bico ou algo assim.

Até que não tinha nada muito grave, né?

gravataí merengue

Máxima mínima

Viver é tão perigoso que sempre acaba em morte.

catarro verde

Ê, ô, ê, ô, o Anhanguera é um terrô

Meu pai cresceu em família de 10 irmãos –se incluirmos nonno Ercole e nonna Herminia no cômputo, ele constituía minúscula e oprimida minoria corinthiana num lar dividido entre tricolores e palestrinos. Sêo Luigi e quase todos os irmãos eram jogadores razoáveis de futebol, e bons dançarinos (um deles, Guy, continua, passados os 60, a ser um exímio pé de valsa). Para o clã Norogna, futibór era coisa muito séria, e a paixão pelo esporte infectou a geração que se seguiria –tanto eu quanto meus primos éramos torcedores fanáticos desde moleques e, porque a história se repete em fezzo, passei a ser a minoria corinthiana oprimida em meio a um mar de palmeirenses e são-paulinos. Com duas diferenças essenciais, though: quando o babbo, nascido em 1941, virou corinthiano, o time ganhava tudo, enquanto eu passei a infância naquela longa seca de títulos que valeu ao escrete mosqueteiro o apelido “faz-me rir”. Plus, eu sempre fui grosso. Terminalmente. Em qualquer posição. Em qualquer modalidade das lides ludopédicas –campo, salão, várzea, gol a gol no quintal da tia- Uncle Filthy sempre viu a bola nascer quadrada.

Nonno Ercole era assíduo freqüentador de um clube de futebol de várzea da Barra Funda, o velho bairro operário paulistano em que a família vivia, e quase todos os seus filhos passaram pelo lendário esquadrão do Anhanguera, presença imprescindível nos torneios matutinos do CMTC Clube. A divisão de interesses dos freqüentadores do clube era claríssima –os mais jovens jogavam bola, os mais velhos jogavam boccia, todo mundo bebia pra cacete, mulher não entrava e qualquer pretexto servia pra convencer os silvícolas a sair na porrada. Se bem meu pai e meus tios sonhassem ver os respectivos filhos honrando a camisa vermelha e branca do “Bambambam da Barra Funda” (marchinha carnavalesca que servia de hino ao Anhanguera), quase nenhum deles continuou morando no bairro depois de casado, e com isso minhas visitas ao clube foram poucas –se bem infalivelmente divertidas.

Os velhos italianos que formavam a base de sócios eram todos, claro, muito racistas, ainda que os muitos anos de Brasil tivessem servido pra que aprendessem a conviver bem com os afrodescendentes que começaram a ocupar o bairro e, com o tempo, conquistar vagas no time do Anhanguera –afinal, os jovens italianinhos tinham todos se mudado para bairros “granfa”, como diziam os nonnos com desdém. O primeiro negro a se tornar sócio do clube, e provavelmente o primeiro negro a descer bordoada em um italiano e ser aplaudido pelos velhinhos, era um sujeito forte, alto, ferroviário aposentado prematuramente depois de um acidente de trabalho. Quando abandonou a cancha, se tornou juiz oficial dos jogos do Anhanguera, e seu fino senso de patriotismo local rendeu muitos pênaltis dúbios e impedimentos inexistentes em benefício das hostes alvi-rubras. Porque o juiz tinha perdido um braço em infeliz encontro etílico com uma locomotiva, obviamente os velhos corneteiros italianos o apelidaram “Polvo”.

Na última vez em que fui ao Anhanguera eu tinha uns 14 anos. O jogo era um “contra”, e os adversários eram moleques de uma metalúrgica do ABC, todos excelentes jogadores. Apesar dos melhores esforços do Polvo e do uso liberal do jiu-jitsu pela zaga do Anhanguera, o jogo já estava três a zero pros visitantes no primeiro tempo quando o juiz se viu obrigado a marcar uma falta contra o time da casa. O faltoso, um moleque mulato com cara de mau caráter, imediatamente xingou o juiz de “aleijado filha da puta”, e o Polvo usou a mão que lhe restava para aplicar-lhe sonora bolacha. O time adversário imediatamente se escondeu atrás do gol, perto do tapume, e o time do Anhanguera pôs fim ao jogo brigando entre si, metade defendendo o juiz, metade acusando-o do hediondo crime da imparcialidade. No meio da confusão, o que mais se ouvia eram os palavrões que o Polvo bradava, em italiano impecável –era “figli puttane” pra cá, “affanculo” pra lá. Meu avô sorriu com a bola de boccia na mão: “É por isso que eu amo esse clube”. Quando morreu, só de sacanagem, deixou instruções severas para que o Polvo fosse um dos carregadores do caixão -do lado em que não tinha braço, claro.

Filthy McNasty

24.3.05

O amor que não atravessa fronteiras

O amor verdadeiro é incondicional, não precisa de explicações.

Quem ama o Brasil por causa de Machado de Assis não ama o Brasil, e sim Machado de Assis. Quem ama o Brasil por causa do clima, ama o clima. Quem ama o Brasil por conta de sua música...

"Já entendi, já entendi. Mas desse jeito é impossível amar um país."

Ah, é? E quanto aos esquimós?

Vêm me falar de patriotismo, mas o único povo que realmente ama a sua terra é o esquimó. Porque não tem nada pior que aquilo lá. Não tem nem terra pra você amar, está tudo debaixo do gelo. Patriotismo é morar num abominável lego das neves, viver à base de comida congelada, e não sair da sua terra por nada. O resto é pra inglês ver.

dies iræ

23.3.05

silêncio

não colocaram no dicionário o que é isso. não é saudade.
não é lembrança. parece com reminiscência. mas não é resto, não é pedaço. não é inteiro. é um clima do mundo. é o ar do mundo quando estávamos juntos. o ar do mundo depois da sua presença. o hálito que o seu nome sopra, nublando o jeito das coisas. o meu corpo.
essa massa irrigada pelo teu nome, é tudo isso o que continua.
algo intraduzível por um sentimento. por um modelo teórico. o que acontece depois de alguém cruzar a sua ponte, o que acontece depois que alguém entrou nos quartos. no colo das mãos. nos ombros.
você tenta voltar ao museu privado de idéias antigas e de palavras, jeitos, posições, modos de andar e de ver, toda a cultura gestual e a memória olfativa que havia em você antes do outro aparecer, mas você não consegue escutar, essa música se perdeu.
você esboça. e nada. não há nada e mais nada. houve a contaminação, das suas palavas, dos olhares, do suor, da maneira de rir ou de andar, de coisas ditas, servidas, ocultas, subtraídas para você. medidas pelo seu gosto, pelo que você queria ou poderia ouvir.
como dizer que visitou um país se você não se lembra dele, a não ser por curvas de montanhas, pelo gosto de um chocolate caseiro que nunca mais você vai molhar naquele chocolate de uma mulher que vai morrer longe de onde passam seus pés?
o que importa isso?
o que importa isso e o que poderia nisso, ser chamado de dramático?
se é alguma coisa que não cabe na dobra de um lenço?
se é alguma coisa que escapou da folha de papel e cruza sua vida de tantas formas, aparecendo quando você se movimentou, num conto que você escreveu? a noite escura, de um sonho cheio de imagens, teatro sem vestígios, atores mudos.
a neve nos telhados, acumulada, pesando a cada inverno.
a casa sentindo o peso, mesmo agora, no pôr do sol da primavera.
rachaduras, farelos da massa de concreto que cedeu.
um gosto de bebida?
qual era o nome daquele drink que você pediu?

Nove de Copas

Raquel

É cedo, muito cedo e chove a cântaros em Porto Alegre. A temperatura caiu vertiginosamente e dos 36º, fomos parar em 17º.

Eu levanto com o sono grudado à pele, louca de vontade de ficar afofando a gata, enrodilhada em travesseiros, no edredonzinho cheiroso. Maldigo cada passo em direção ao banheiro, arrepios de frio no corpo em pé, apesar de ainda adormecido. Só bem depois que a água quente encharca os cabelos, molha o corpo todo, desperta os sensores da pele, eu acordo. Contrariada, claro. No dia mais gostoso de dormir dos últimos meses, chuvinha e friozinho, tenho que levantar mais cedo para fazer o bendito Raio X.

Saio sem café porque muito atrasada, enfrento um trânsito de inferno com a chuva atordoante, motoristas enfurecidos, nada que preste no rádio e esqueci os CD’s em casa. Brigo feito uma onça por uma vaga no estacionamento e me arrasto furiosa para dentro do Hospital Moinhos de Vento, cabelos arruinados, roupa úmida. Ai, que nojo.

Já sentada na sala de espera, olhos fixos nos meus pés. Será que a cirurgia é necessária? O ortopedista disse que melhor operar agora, sem artrose nos joanetes herdados da Vó Nininha. Penso no incômodo da cirurgia, anestesia, pós-cirurgia, recuperação de 40 dias. Cacete. Depois bota rígida, pé pro alto, nada de salto, horror, horror, horror. Temporada em Pelotas, dependendo da família. No auge do meu péssimo humor, percebo uma menina sentada perto que chacoalha irritantemente as pernas no ar.

Olho para ela como quem suplica trégua e ela entende. Pára imediatamente e sorri um sorriso de dentes de leite, muito pequenos e separadinhos entre lábios muito vermelhos, pele branquinha. Desconfio que o movimento era para chamar minha atenção.

Eu agradeço a gentileza com o melhor sorriso que consigo, entre o amarfanhado e o sem graça. Ela pergunta meu nome, respondo e retribuo a pergunta, mais como complemento da gentileza do sorriso que por vontade. Ela diz que é Raquel. Penso que com esse nome, ela deveria ter tranças, mas os cabelos estão presos num rabo de cavalo ralinho. Pergunto pela mãe, ela me diz que está falando com o doutor Marcelo. Ah.

Sigo na minha mudez casmurra, deixando claro que desisti da minha tentativa de ser simpática, mas Raquel não permite meu isolamento. Pergunta a minha idade e depois a data do meu aniversário. Ela diz que tem 7 e faz 8 em julho. A-hã.

Olho mais para Raquel. Tem braços e pernas bem longos, é toda esguia, elegante, senta-se bem, com uma postura linda para uma menina de 7 anos. Passaria fácil por uma princesinha russa. Os olhos são um breu e escondem um enigma, com toda certeza.

Um pouco antes da mãe voltar, Raquel me dirige os olhos como quem pede a minha mão e me pergunta muito naturalmente: "- Tu também veio fazer rádio?" Eu digo “hã?” para ter tempo de organizar o cérebro e ela repete: "- Tu também tem câncer?"

Nocaute, Raquel. Eu não consigo mexer os lábios. A mãe chega e possivelmente entende a minha situação difícil. Dá oi e sorri como quem me abraça, generosidade de família. Eu respondo num fio de voz que só vim tirar fotografia do pé. Raquel ri alto, dá a mão pra mãe e diz tchau.

Estórias da Carrocinha

mãe

nós na lanchonete, eu 6 anos, ela 30. na frente, uma mulher nos 20. eu comia meu sanduíche quando ouvi a voz, agressiva.

- o que que foi?

minha mãe:

- nada, só estou te achando bonita.


pai

ele lavava o carro. eu da janela, 9 anos, ele 43.

- pai, o que é simplória?

- é quem faz esse tipo de pergunta.


sempre que ouço a palavra cultura saco o meu talão de cheques

** ia **

Terapia eu já fazia.
A novidade é a academia.
Minha meta? A hipertrofia
do ego, do corpo e da mania
de botar para fora o que poderia
ter virado apatia.
Cansei de pensar no que seria.
Resolvi ser agora mesmo tudo o que eu queria:
calmaria, alegria e verborragia.

Figuras de Linguagem

19.3.05

"Infeliz do país que precisa de heróis"

Primeiro eles perseguiram os comunistas, e como eu sou daltônico e a tia ainda não tinha ensinado divisão, eu não fiz nada.

Depois resolveram perseguir os muçulmanos, e desde então sigo os preceitos de Krusty, o judeu, e vivo às gargalhadas.

Em breve eles perseguirão os traficantes, e como eu imagino que apenas a Souza Cruz seja capaz disso, I couldn't care less.

Com sorte, algum dia ainda perseguem os estudantes de artes cênicas.

Beethoven xingando os "copistas" na partitura de sua nona sinfonia -- du verfluchter Kerl! --, bem no trecho referente à fraternidade entre os homens.

O mundo é bom demais.

dies iræ

Moacir

Estava tomando café na Fnac quando o telefone tocou. Número desconhecido. Atendi.
— Alô?
— Alô, Moacir?
Muito bem. A maior parte das pessoas diria que, a não ser que você se chame Moacir, a resposta correta deve ser:
— Não, acho que você se enganou.
Então a outra pessoa diz "Ah, desculpe", ou "Que cabeça, a minha!". Você responde "Não foi nada", ambos desligam e pronto.
Pessoas que pensam assim não sabem se divertir. Eu, por exemplo, a despeito de me chamar Marco Aurélio, respondi sem hesitar:
— É ele.
— Ô, rapaz! Você vem pra cá?
— Peraí. Quem tá falando?
— O Eduardo, Moacir.
— Ô, Edu! Que bom que você ligou, já ia ligar pra você.
— Pois então, você vem pro clube?
— Ah, Edu, não sei. Essa chuva...
— Deixa disso, rapaz! A moça tá aqui, já tá tudo acertado.
— Hum. Tudo acertado?
— Tudo, tudo!
— Tem certeza, Edu? Cê cuidou do negócio todo e tal?
— Opa, claro!
— Tá bom. Então tô indo, me espera aí.
— Ok. Tô aqui na frente da Blockbuster. Você demora?
— Acho que levo uns quarenta minutos, tá um trânsito danado.
— Ah, tudo bem. Tô te esperando.
— Mas tá com a moça, né?
— Tô sim.
— Vê lá, hein Edu?
— Ô, Moacir, eu alguma vez já te deixei na mão?
— Hehehe. Espera aí, tô saindo agora mesmo.
— Tá legal. Até mais.
— Até. Abraço, Edu.
Imagino que deixei um Edu e uma moça esperando debaixo de chuva, enquanto um Moacir em algum lugar da cidade esperava por uma ligação a respeito da moça.
A vida pode ser divertida, às vezes.

Jesus, me chicoteia!

18.3.05

Sê, nega!

"A vida divide-se em três períodos: o que foi, o que é e o que há de ser.
Destes, o que vivemos é breve; o que havemos de viver, duvidoso; o que já vivemos, certo."

O chato mais digno de pena é o chato jovem.

Smart Shade of Blue

Ele chegou sem roupas nem pasta em casa. Ela só perguntou da pasta. Não que ele se importasse, mas, diabos, ele estava pelado. Não que ela se importasse, afinal, ela não se importa mesmo. E assim, pelado, ele foi ler o jornal. E assim, sentada, ela via a cena como se quisesse mudar de canal. Se pudesse.

Determinar de onde vem a culpa é inútil, uma vez que já meteram a colher na relação. O terapeuta. Terapia de casal. Encontre algo novo. Mude a rotina. Certamente, a terapia era uma quebra, mas só contribuiu para acertarem os horários. Das 19 às 20 horas, de terças e quintas, eles brigavam. E o terapeuta anotava. Ou desenhava. Às vezes só rabiscava. Nunca disse nada, por medo de estragar uma briga que, apesar de tudo, era muito boa.

Era o que tinham de melhor: as brigas. Sem dúvida, eram mestres nisso. Os insultos cada vez mais espetaculares, aprimoravam o vocabulário do casal – e dos vizinhos. Ninguém em sã consciência se atrevia a parar algo tão perfeito, tão fluído, tão caloroso.

Até que o terapeuta resolveu falar. Nem ele lembra o que foi que disse. Mas, isso foi o fim. O que ele disse realmente acabou com as brigas. E, embora ambos ocasionalmente tentassem entrar em conflito, de uma maneira ou de outra, o conselho do terapeuta pôs tudo que era de bom no relacionamento à perder. Para os vizinhos, assistir aquele casal agora era como ver uma criança autista morrer de tristeza.

Ele e ela foram vistos de mãos dadas na rua, sábado passado.
Tudo que é bom tem um fim.

Chicked Dog

Parado na paródia

POEMA DE SETE CORES TODAS DA MESMA COR

quando nasci
um pintor torto
desses que cortam as orelhas
disse
vai tinta!
ser guache na vida

Delírio (tatuagens de acne)

Focos da Fal : Correspondência Secreta

Querida Ticcia: Foi um domingo glorioso com as mulheres da minha família. Presa com elas por horas, numa cozinha. Veneno meu. Eu podia ter levantado e ido embora. Mas elas me fascinam, ao mesmo tempo em que me aborrecem, deprimem e assustam. As mulheres da minha família têm peitos pequenos, ombros estreitos, cabelos impecáveis, mechados. Elas não têm mais de 1,63 e usam blusas fofas em tons pastéis, de seda, com laçarotes. E façam o que fizerem na cozinha, suas blusas continuam impecáveis. Assim como seus cabelos. Elas não fumam. Seus filhos são ajustados. Elas têm empregos sensatos, carreiras planejadas. Elas comem fibras. Elas borboleteiam rápidas, ligeiras. E eu, alta, gorda, grande, com uma mancha de molho no peito (no meu enorme e inadequado peito), perto delas me sinto um gigante lerdo. Lerdo e cheio de dúvidas. Sou aquela que derrubou o arranjo de flores (que uma delas fez, elas não compram essas coisas prontas), quebrou dois pratos, entupiu a máquina de lavar louça (as mulheres da minha família têm máquinas, muitas máquinas). Sou aquela da perna com a qual o cachorro tenta cruzar. Elas sabiam o que queriam ser quando crescessem e foram. E são. Eu não. Elas não brincam de casinha, suas casas são austeras, exatas. Elas têm tantas certezas. E todas absolutas. E eu me sinto mínima, burra, fútil, fútil. Elas tiveram todos os bebês que quiseram antes dos 25 anos, e agora riem duma prima distante que se vê as voltas com fraldas e brotoejas aos 43. "É tão... ah, querida, você sabe, patético uma mulher dessa idade tendo que lidar com um bebê. Você tem sorte de não passar por isso". Aliás, tem sempre uma das mulheres da minha família me dizendo esse tipo de coisa. "Você tem sorte por não se preocupar com dietas, eu levo uma vida de escrava". "Você tem sorte por não ter filhos, eu vivo só para eles". "Você tem sorte por não ter um emprego, eu não sou promovida há 6 meses". E eu, a sortuda, encolho meu pés embaixo da cadeira e sorrio para minha vodca (Elas bebem vinho branco suave, doce, com licor de cassis. Eu bebo vodca. Pura. Muita).
Olho em volta, naquela cozinha imaculada, imaculada num dia de festa (nem quando eu tinha faxineira eu tinha uma cozinha assim), para observar a bancada impecável, os eletrodomésticos cromados, e uma delas logo me pergunta "Querida, o que foi, você não está com fome de novo, não é?". Elas me tratam com a condescendência que reservamos para os senis, as mulheres da minha família. Sorriem com superioridade para perguntar "E aquele seu livrinho? Ah, eu achei bonzinho, mas não pude ler inteiro, muitos palavrões, você sabe". As mulheres da minha família não falam palavrões, não lêem palavrões, não pensam em palavrões. As mulheres da minha família me atraem. Elas me hipnotizam. Nessas poucas horas de contato (eu passo aproximadamente quatro anos sem vê-las), tento aprender como ter as unhas lustrosas, o cabelo imóvel, os gestos contidos. O pobre A. me resgata, heróico, galante, beijando minhas mãos e inventando desculpas elaboradas. Ele também não entende por que eu continuo vindo. Eu não consigo explicar o fascínio, o masoquismo. Saio de lá com ataques de asma. Não, eu não tenho asma.

Focando.org - Opiniões Dose dupla de Fal

Vaselina

Odeio quem não toma partido. Odeio quem é "amigo dos dois", que faz " o possível pra permanecer amiga dele tb".
Tenha culhões, caralho. Tenha coragem. Me mande tomar no cu, mas tome uma decisão.
E aí eu tenho que ler "é uma situação complicada, mas eu não tenho nada contra vc, nem contra seu irmão, mas tb não tenho nada contra ela".
Contra mim???? Depois de 8 anos de amizade dedicada, presente, apaixonada, fiel e constante, minha filha, só que faltava era você ter alguma coisa contra mim.
Ora, se vc não toma uma decisão tomo eu.
Pode ir pra puta que pariu, sua vaca.

¡Drops da Fal!

varal

- Alô?
- Oi, Tia! O que tu tá fazendo?
- Vou lavar roupa.
- Ai, que deprimente!
- Mas tu perguntou!
- Mente!
- Tá bom. Vou fazer sexo selvagem com três homens gostosos.
- Ah, tá bom. E depois?
- Depois eu vou pendurar os três homens gostosos no varal.

A Caverna da Ogra

Cantiga de Amiga

"A gente nunca está só de verdade. Nossos sentidos conversam uns com os outros, a razão discute com a imaginação, tudo numa sublime camaradagem", dizia Ju para A. quando passei pelo sofá da sala. Ora, eu conhecia essa frase, o autor dessa frase. Levei uns 15 segundos para baixá-lo da memória. Era uma frase idiota que poderia ter sido dita por qualquer idiota, mas tinha dono. Mário de Andrade. Fui lentamente até a janela para tomar um pouco de ar. Parado. Nenhuma folha das palmeiras centenárias da Paissandu se mexia. Eu suava por baixo da camiseta preta. Dei um gole na coca, virei as costas para a rua e encarei as duas com meu olhar lombrosiano. Nada. Eu era uma cebola. Elas conversavam animadamente, pelo visto sobre a recente viagem de A. ao norte do país. Entrei na Billie Holiday do porta-retrato sobre a mesinha para ouvi-las mais de perto. A. garantia que havia provado ensopado de jacu com uísque. As duas riram. E riram. E riram. Ainda estavam rindo quando Ju disse que ia estudar literatura galega medieval no ano que vem. A. não acreditou. E riram outra vez. Ju explicou que há muito tempo era apaixonada pela literatura galega. Que nutria por seus autores "um não sei quê, que nascia não sei onde, vem não sei como e dói não sei por quê". A. suspirou. Eu engasguei. Outra citação? As duas suspiraram. E suspiraram. Depois começaram a cochichar e eu perdi o final da história.

Prosa Caotica

17.3.05

CLT

— Aquela lourinha é a cara da mulher do chefe!

— (mastigando) Hmmm... mais bonita...

— Olha que isso dá demissão!

— (engolindo) ...a mulher do chefe é mais bonita, eu digo.

— Aí nesse caso é justa causa!

Zeno Blog

Sério, que tipo de gente?

Que tipo de pessoa reclama quando se fala mal do Brasil? Falar mal do Brasil é a nossa única qualidade; é a nossa pequena e voluptuosa tradição. Outros países cometem a boçalidade de amar a si mesmos e, muito freqüentemente, odiar judeus; nós odiamos a nós mesmos, o que é muito menos cretino e até mesmo mais elegante. E até isso querem nos tirar?

Querem que sejamos como americanos, que cometem a boçalidade de amar o próprio país? Parem de copiar os americanos e aprendam a odiar o próprio país, como gente decente. Quando estamos todos num carro rindo do Brasil, como sempre acontece, e de repente ouvimos a sua voz fininha vindo do banco de trás, dizendo “Ai, gente, vamos parar com isso, é o nosso país” – dãaa, tem sempre um retardado que diz isso - tenho a certeza que nunca vi tamanha falta de brasilidade quanto a sua.

Alexandre Soares Silva

15.3.05

O povo, munido, jamais será vencido

Não sei se o pior é a feiúra do povo brasileiro, ou os políticos querendo pintá-lo de bonito, vendendo ideais patrióticos ridículos na tevê pra conseguirem se eleger.
Moro no Brasil há vários anos, e nunca me escapou que seus habitantes repitam na rua as gírias felomenais que aprendem em novelas de televisão. Não neguem.
Mas acordei otimista. Acordei profético. Enquanto obras de Stendhal não forem traduzidas como "O Nativo e O Afro-Descendente" ainda há esperança de salvação.

dies iræ

Celinas, Ricardos e Franciscos

Mulheres não querem relações abertas, querem ter um dono.
Mulheres não querem sexo com hora marcada.
Mulheres querem romance, querem entrar no mar de mãos dadas.
Mulheres não precisam de perdão, precisam de poesia.
Os homens não deveriam se preocupar com os Ricardos e sim com os Franciscos.

Licor de Marula com Flocos de Milho Açucarados

nas nuvens

- Você ainda gosta de mim?
- Eu sou um balão. Eu só encho de amor por você.

9 de copas

12.3.05

Chico Buarque Tá Comendo Todo Mundo

Não é nova a fama de galinheiro de Chico Buarque. Mas, das fofocas que já ouvi, nenhuma tinha fotos ou fatos para comprovar a boataria. Tem aquela história de que a separação dele com a Marieta Severo foi porque ele comeu a Daniela Mercury. Não sei se acredito.

Se você for um pouco esperto também dá pra sacar que ele já comeu muita gente por aí na surdina: Babi, aquela ex-apresentadora, ex-cantora e ex-modelo da MTV e do SBT e a Fernanda Lima. Também não posso provar nada, o que fica claro é que, se Chico não comeu, pelo menos o mulheril teve vontade de dar.

Agora, um paparazzi esperto fotografou o compositor senil nos catos com Celina de Andrade Lima Sjostedt, de 35 anos. Não é lá grandes coisas, mas deve ser boa de espírito. O marido emendou com esta:

"Só quero que ele deixe nossa vida em paz, bote na balança que temos família e vá procurar alguém da idade dele. Talvez em uma clínica geriátrica."

Eu acho mesmo é que Chico devia apavorar outras vizinhanças e começar a comer todo mundo que estiver disposto, principalmente apresentadoras de tevê em decadência.


não vá se perder por aí

Pai

Ontem meu pai na hora sagrada do almoço, contou pro meu primo que meu avô o ensinou a comer viado e resolveu repassar o ensinamento:
- Pra comer viado, nunca pega na cintura, senão o pau do cara bate no teu braço, pegue na orelha!
Depois disso veio a decepção maior, quando ele olhou pro meu primo e perguntou:
- Vai me dizer que você nunca comeu um viado?

Definitivamente meu pai perdeu totalmente a vergonha e eu também, de contar isso aqui, já que passei o blog pra tantos amigos dele, tadinho.

Eu não me acho, eu tenho certeza!

9.3.05

menina com mel

Modéstia à parte, porque eu sou uma menina muito modesta, mas eu acho que estou com mel. Menina, isto nunca acontece comigo, tantos meninos, Jésuis... Será que é porque é dia da mulher e todo mundo resolveu encher minha bola? Ih, droga, não tinha pensado nisso... Tá bom, enfim, vou acreditar que não, e que eu estou com mel mesmo, porque está fazendo bem para o meu ego... Então pelo jeito o meu fim de semana vai ser atribulado. ou o fim da semana. Ou quinta. Ou quinta e sexta. Enfim... São tantas opções... hahahahhaa
Podem me xingar de biatch.

diário de uma pós adolescente urbana

7.3.05

Os olhos são as janelas da alma

Donde se deduz que a boca é a porta, a língua o tapetinho e o nariz a campainha. A orelha seria uma espécie de entrada de serviço, e o cérebro, um sótão cheio de traste velho e sem função.

dies iræ

A ESTÁTUA (conto curto)

A uma estátua foi dado o poder de se esculpir a si própria. Então, ela pegou o cinzel e o martelo e se deixou com o formato da rocha que antes era.

Pró Tensão

4.3.05

A vida noir de Filolau Sinfrônio - Episódio I

Meu nome é Sinfrônio. Filolau Sinfrônio.

Se eu fosse um cara com mais sorte, minha história teria dado um film noir. Mas meu filme queimou ainda na caixinha, e a piada que eu chamava de vida transformou-se em uma película velada, apagada. Negra como a consciência de certos beletristas paulistas. Como não pude ser produto acabado, talvez como um famoso ator de film noir, tive que me contentar em ser matéria prima _ um investigador particular. Filolau Sinfrônio Investigações, “fornecemos toda a verdade que você puder pagar”. É verdade que sofri um processo por direitos autorais de uma igreja pentecostal, mas o juiz, um cara vaidoso e bem apessoado estreante na primeira instância, acabou decidindo a meu favor. Eu já investigara a jovem e brejeira mulher de um velho desembargador uma vez, muito conhecida do juiz, o que facilitou a vida da Justiça, que é cega mas não é burra.

Descobri esta minha facilidade para desvendar casos de adultério no dia em que cheguei em casa e repentinamente intuí que havia um homem pelado em minha cama. As pistas ajudaram: havia uma cueca vermelha em cima da cômoda (todas as minhas cuecas são marrons, por uma questão de higiene), um sapato com chulé na porta do quarto, e além disso, afinal, o cara estava em minha cama. E _ sinal da transfiguração de todos os valores que caracteriza os dias que correm _ a Maria, aquela galega da minha esposa, tinha se escondido dentro do armário. Como estava desempregado, botei os dois pra fora, peguei o terno do otário em cima do sofá da sala e comecei a fornecer serviços de detetive particular. Filolau Sinfrônio, caçador de verdades sutis, a seu dispor.

Claro, a sorte me sorriu, mas só depois de algum tempo é que entendi do que é que ela estava rindo. Na verdade, isso só ficou completamente claro depois que aquela dona, muito bem apertada por uma saia de desenho hidrodinâmico, entrou no meu escritório e perguntou, como se sua quente e úmida existência dependesse disso:

_ Sinfrônio ? Filolau Sinfrônio ?

Nunca ninguém antes fora capaz de pronunciar "Filolau" de forma tão sexy. Em sua boca de lábios carnudos, o Filolau agigantava-se, adquiria entonações que até então me eram desconhecidas, as vogais se tornavam mais lânguidas e as consoantes, enrijecidas, e a palavra saía úmida e fumegante por detrás daqueles dentes perolados. Na verdade, durante toda minha vida só me chamaram de Sinfrônio, que não é tão sexy quanto Filolau. Quer dizer, exceto naquela ocasião em que visitei uma fazenda de avestruzes e...mas, divago.

O fato é que a loura escultural acabara de retirar um lencinho branco e perfumado de sua Prada e usava-o para enxugar delicadamente as janelas de sua alma. Com certeza, dentro daqueles olhos seria possível contemplar todos os mistérios da vida, mas o problema é que ela estava chorando e arfando, o que, aliado aos efeitos especiais produzidos pelo seu decote, propiciava um espetáculo que chamava minha atenção para longe dos tais mistérios da vida, menos dois deles, alvos e empinados.

_ O Sr. é detetive, não é ?

_ Claro. Formado na escola da vida. Sente-se, por favor. Qual é o problema ?

Ela se sentou e cruzou as pernas. E eu pensei ter visto Deus sob a forma de uma calcinha de renda preta.

_ Bem...não sei como dizer...

Eu já estava acostumado. Elas chegavam sempre frágeis e chorosas, mas quando começavam a desfiar o longo rosário da problemática conjugal, era questão de minutos até se transformarem nas próprias Parcas. As Parcas, aqui no meu escritoriozinho no centro, valha-me São Jorge Guerreiro.

No entanto, não foi bem isto que aconteceu. Sua voz chorosa formou uma nuvem, que choveu estas palavras sobre minha mesa:

_ ....enfim...o problema é meu marido...ele tem um blog.

_ Isto é grave _ eu disse.

_ Sim, é grave.

Constrangidos, olhamos cada um para um lado. Ela com seu lencinho, adejando no ar como um colibri ocupado em sorver o néctar daqueles olhos, e eu tamborilando os dedos sobre a fórmica da mesa, imaginando o que dizer. Maristela, a barata com síndrome do pânico que havia fixado residência em minha mesa no dia em que eu distraidamente esqueci meu vidro de Prozac aberto na gaveta, explorava o mundo exterior com suas inocentes anteninhas, que apalpavam nervosamente o ar pela fresta da gaveta. Eu a alimentava com pedacinhos de pão e fragmentos de pistas usadas. Ocasionalmente ela fazia um servicinho involuntário para mim, como a identificação de entorpecentes e psicotrópicos _ a única refeição que a fazia sair da gaveta e voar em torno da luminária.

_ Ele usa Movable Type ?

Minha experiência indicava que maridos que usavam o Movable Type nos seus blogs estavam, invariavelmente, a um passo da perdição.

_ Usa. E Haloscan também.

Talvez ela tenha percebido o deslocamento infinitesimal de minha mandíbula em direção ao chão, porque a frequência e a modulação do seu arfar alteraram-se sutilmente, trazendo considerável agitação hormonal aos fluidos deste seu criado. Compreenda-se: meu estado civil, na época, era o estado de sítio, e a mulher era um pedaço de mau caminho, daquelas de fazer parar ônibus fora do ponto. Se ela soubesse o que era um ônibus, o que certamente não era o caso.

_ O meu marido, bem... _ começou ela, em uma tímida tentativa de se transformar em Parca _ é uma pessoa muito sofisticada. Cheia de wit. Sabe ?

Eu sabia. Muitos amigos meus compravam wit na 25 de março. Segundo os médicos, excesso de wit gera dependência, seguida de um tipo de decadência elegante muito frequentemente associada a distúrbios de personalidade e delusions of grandeur. Amigos meus haviam partido desta para a melhor em uma última viagem de wit. Salvador de La Plata foi encontrado morto no Deux Magots, em Paris, com um livro do Mencken nas mãos. O livro era uma publicação em francês e estava virado de ponta cabeça, pois Salvador não lia francês. Mario Dragonetti Versal Júnior morreu congelado dentro da neve fofa após um tombo em uma estação de esqui nos Alpes. Morreu apenas porque decidiu aceitar a situação. Antípedes Florinto foi comido vivo por um tubarão branco na Cotê d´Azur. O tubarão foi encontrado morto, apenas alguns metros depois da carcaça semidevorada do Antípedes. Envenenado. Por excesso de absinto. Wit.


SMART SHADE OF BLUE

A Fábula do Garoto Quieto e da Menina Colorida

Há muito, muito tempo havia um garoto quieto, inocente, gentil e que tinha medo dos sentimentos: os deles e o dos outros. Havia também uma menina colorida. Linda, com ou sem o seu chapéu amarelo (ou azul). Ela era alegre, mas podia ficar brava de dar medo. Era carinhosa, mas também podia ser bem arisca. Enfim, como todos que viviam naquela terra, os dois eram complicados.

Quando se conheceram, a menina e o garoto viraram grandes amigos. Andavam de mãos dadas, se abraçavam, trocavam carícias inocentes. O menino amava aquilo tudo, só que ele sofria, coitado. Ele gostava muito da menina colorida, mas não sabia como dizer ao mundo isso, mesmo achando que o mundo inteiro sabia do seu segredo. Tinha medo que a menina colorida fosse embora quando soubesse o que havia dentro dele. Imaginava que ela sairia correndo quando descobrisse. Ou será que não fugiria? "Não, não vale a pena arriscar", dizia ele para si mesmo.

A amizade deles foi crescendo rapidamente e já era do tamanho do mundo. Mas aquilo que havia dentro do garoto também estava crescendo. Passou a incomodá-lo. Chegava até mesmo doer. Mas ele não dizia nada. No começo, a menina colorida parecia não se dar conta disso ou, pelo menos, não se incomodava. Mas aquela coisa ficou enorme e já tentava ocupar o mesmo lugar da amizade, que também era enorme. Assim, de repente, aqueles sentimentos do tamanho do mundo se empurram para bem longe, e os dois se separaram. Eles até queriam estar juntos, mas não conseguiam. Estavam muito longe um do outro. E foram se afastando, se afastando até se perderem de vista. Pensaram que não se veriam jamais e, por isso, aquilo tudo foi aos poucos caindo no esquecimento.

No entanto, muita gente esquece que o mundo é uma grande bola e, se você caminhar sempre em linha reta, acabará chegando ao mesmo lugar de onde saiu. E foi isso que aconteceu com o garoto e a menina colorida, só que muitos anos depois. Foi um momento surpreendente e feliz para os dois, muito embora era inegável que os dois tinham mudado muito depois de tantos anos.

Pouca gente sabe mas nossas memórias são bolinhas de vidro que vivem em nossas cabeças. Algumas são frágeis como uma flor. Outras grossas e duras como pedra. Algumas são cristalinas como o ar. Outras, escuras e impenetráveis como a noite.

Essas bolinhas vivem se mexendo de lá pra cá em nossas cabeças. De vez em quando elas surgem do nada e acabam desaparecendo tão rapidamente quanto apareceram. Outras estão sempre perto da superfície. E tem aquelas que estão sempre escondidas, pois, como são pesadas, acabam bem lá no fundo e é preciso algo muito forte para tirá-las de lá.

Voltando à nossa história, quando eles se reencontraram as bolinhas de vidro na cabeça de cada um começaram a se agitar. Na cabeça do garoto — que já não era tão quieto assim (era inclusive metido a engraçadinho) —, elas mexeram com tal força que mesmo as bolinhas mais pesadas começaram a sair do lugar.

Ele viu todo o tipo de bolinhas. A maioria era alegre e o fez sorrir. Algumas, porém, eram tristes. Aí ele chorava. Mas uma delas era especial. O vidro era duro e inquebrável, mas era cristalina e diáfana. Dava para ver tudo lá dentro. Mas só ver. E ele viu a menina colorida e todos aqueles sentimentos um dia maiores que o mundo dentro da bolinha, que era extremamente pesada para algo tão pequeno. Ele queria tocar o seu conteúdo, mas o vidro era duro de mais. Ele queria mostrá-la para a menina colorida, mas, como se sabe, ninguém além do dono vê suas próprias bolinhas.

Já a menina de amarelo viu bolinhas de vidro diferentes e não entendeu porque o garoto quieto ficava mexendo tanto no que para ela pareciam bolinhas imaginárias. E ele tentava explicar como eram as suas bolinhas, mas não conseguia. E ele queria saber como eram determinadas bolinhas na menina, mas algumas ela não conseguia achar. E ele ficou insistindo para ela procurar. Só que isso a deixou irritada e ela foi mudando de cor. Primeiro amarelo, depois azul, vermelho, roxo... E o garoto quieto não sabia falar sem fazer referências as bolinhas, tão importantes para ele, e até tentava fazer piada da situação. Mas ela não achava graça nenhuma.

Foi quando o garoto percebeu que as suas bolinhas de vidro eram dele e de mais ninguém. Não adiantava querer compartilha-las. Por mais belas e importantes que fossem. E que as bolinhas da menina colorida só poderiam ser encontradas por ela própria. Não adiantava forçá-la.

Foi nesse momento que ele virou para a menina de amarelo e disse:

— Viu o jogo do São Paulo, ontem?

Moral da história: Nossas memórias explicam quem somos, mas nem sempre são a melhor maneira de nos explicarmos para os outros. Com exceção, talvez, de seu terapeuta.

Chez Nigro's - Movimento pela Insanidade Coletiva

3.3.05

Dois pesos, duas medidas.

É incrível como o ser humano pode mudar de postura e conduta conforme a situação.

Imaginem que você é amiga de uma pessoa super legal e essa pessoa super gente boa acaba por se envolver com um cara casado, sim leitor, isto acontece e é mais comum que espinha em adolescente.

Sendo essa pessoa sua amiga querida, quem é a vítima?

Sim, ela, sua amiga, vítima, enganada, ludibriada e por fim humilhada por um canalha, filho de uma rapariga desdentada e assanhada.

Agora imaginem que você tem uma super amiga que se acha hiper bem casada e o marido dela se envolve, secreta e clandestinamente com outra mulher, que nem você nem ela conhecem.

O que "estazinha" é?

Uma vadia, destruidora de lares, desalmada, vigarista, verdadeiro demônio travestido de mulher.

Quantas verdades compotam um único fato?

veleidade