Quando meus pais foram morar no Iraque, eu tinha dezesseis anos. Não fui junto porque (felizmente) tinha acabado de passar no vestibular, e sinceramente, não tinha a menor vontade de morar num país em que mulheres são consideradas como seres inferiores a cachorros – e é bom lembrar que muçulmanos odeiam cachorros – e, além disso, minhas irmãs também iam ficar no Brasil. Claro que fomos nos despedir no aeroporto, afinal seriam pelo menos 6 meses sem nos vermos. É claro que alguns tios foram também, e é claro que um agregado chato resolveu me patrulhar por não estar derramando lágrimas, soluçando ou fazendo qualquer outro tipo de showzinho de emoção para diversão da platéia. Fiquei muito puta, mas em vez de dizer que não tinha satisfação nenhuma a dar pra ele e instruí-lo sobre o local mais apropriado para introduzir suas idéias sobre o comportamento que eu deveria ter, só falei que eu não era peru pra morrer de véspera e que quando a saudade batesse eu talvez chorasse – e podia até ligar pra ele avisando, caso ele fizesse mesmo muita questão de ver.
Quando eu abri o envelope do meu exame – que eu pensava ser de rotina – no elevador e vi as palavras “Oncológico positivo” tomei um susto, disse “Uau” e admito que contei pra minha mãe e, mais tarde, pro meu marido, sem o menor tato, assustando os dois mais do que devia e depois tendo que consolá-los. Mas só consegui sentir medo mesmo e chorar um pouco vários dias depois, já perto da cirurgia que levou embora meu recheio feminino quase todo e mais os gânglios linfáticos das pernas. Depois que parou de doer, acho que não chorei mais. E se chorei, esqueci completamente. Vai saber.
Quando o fdp do ladrão me abordou na porta da agência em que eu trabalhava, apontou uma arma pra mim e disse pra eu calar a boca e sair do carro, porque ele ia levá-lo, eu fiquei com tanto ódio do trabalho que ia dar pra ser ressarcida pelo seguro, do fato dele levar minha bolsa com todos os meus documentos, um canivete com aço de Toledo que eu havia ganho de um namoradinho havia mais de 20 anos, montes de bilhetinhos do gatim de desde a época do namoro, que nem senti medo, nem chorei, minhas mãos nem tremeram. Semanas depois, fiquei meio covarde pra sair sozinha, desconfiava de todo mundo na rua, não saía da agência depois das 6 sem alguém comigo. Mas isso também passou logo.
Anteontem, dia de Natal, fez um ano que o meu menino querido, meu “pupilo”, meu amigo, meu filhotinho de coração morreu num acidente estúpido, com a avançada idade de 23 anos. Lembrei dele o dia inteiro, e ainda que não lembrasse sozinha, no dia anterior, no posterior e no próprio, tudo conspirou pra essa lembrança : vi um carro capotado na rua, achei uma carta que ele havia me mandado quando eu me casei, encontrei revistas do Spawn pra todo lado em casa, passou Homem-Aranha na TV, ganhei o DVD do filme Billy Elliott da minha irmã. Mas essa lembrança não atrapalhou nem entristeceu meu natal, e não, não chorei. Na verdade, nessas 52 semanas desde que ele morreu, essa foi uma das poucas em que eu não derramei uma lágrima quando pensei nele. E eu pensei nele em todas.
Eu não sou durona. Eu não sou insensível. Eu às vezes choro com comercial vagabundo, filme mais ou menos, tirinhas do Calvin ou da Rose is Rose, música ouvida 800 vezes, posts em blogs de amigos ou de desconhecidos, um olhar do meu bem, um beijinho de lixa da Nina. Mas raramente consigo chorar quando se espera, quando se deve, quando “fica bem”. Talvez minhas emoções sejam retardadas, nos dois sentidos. Talvez seja um reflexo do meu gênio ruim. Talvez seja pura pirraça. Talvez seja porque alguma coisa em mim insiste em ser indomável, e as lágrimas sejam o último refúgio verdadeiro de liberdade total. Essa água aparece quando quer, ninguém a faz brotar, dela ninguém muda o curso, nela ninguém põe represa, ninguém jamais faz secar. Se eu tivesse um brasão, seu dístico seria este : Lacrimae libertas sunt.
Cyn City - UOL Blog