31.1.06

Chamem a ambulância!

Já enchi o saco de ouvir que alguns cremes dentais têm "mais refrescância" que outros. A palavra pode até existir, não discuto. Se funciona — isto é, se transmite as idéias de quem a usa — a palavra existe, e acabou o assunto.
Eu, que não sou de dar barrigada na onda, embarco. E agora só compro bolachas com alto teor de crocância. Nunca tive tanta aspirância por isso. Pensando bem, preciso de viver com maior excitância. Quero uma vida doce, cheia de adoçância; luminosa, repleta de brilhância. Vou sair mais, vou a lugares divertidos, onde haja muita dançância. Uma vida de alta crepitância, sabe?
E se isso não der certo, sempre poderei lançar mão da imigrância: vou a um profissional de boa despachância, tiro o passaporte, e volto para Portugal, pra fugir dessa ignorância (esta existe).

Branco Leone

DO LADO DE FORA PARA VOLTAR

Faça um exercício: acorde como se estivesse ido embora. Contorne a casa pelas janelas de fora. Não denuncie seus movimentos, não produza nenhum barulho, sequer o da respiração. Passe pela vidraça do quarto do filho e os veja brincando, mexendo com seus bonecos, conversando com seus espíritos, naquela alegria de alma que as crianças exercitam naturalmente.

Fica com vontade de rir dos diálogos entre o filho e seus guerreiros imaginários. Uma ternura de cócegas na barriga. Percebe que ele usa suas expressões. As pausas parecidas. O franzir dos lábios idêntico. Pensa em dar um susto para abraçá-lo em seguida, mas não pode dizer que está ali. Não pode interrompê-lo. Não pode gritar ou expressar o seu amor.

É um passeio calado como o de um fantasma. Isso vai irritando. Você não suporta ver sem ser visto. Entende que ver sempre foi uma retribuição. Atravesse a casa pelo lado externo, como a vitrine de uma loja. A loja é a sua intimidade. Está fechada, tal domingo. Os mortos não podem comprar seus pertences de volta. Todo dia para quem partiu é um domingo, sem expediente.

Conduza a lembrança para o outro aposento. E enxerga sua filha chorando devagar. Talvez seja por você ou pela lacuna de uma cadeira na mesa. Ela sentava no almoço na sua frente. Observa que o livro que comprou está ao lado dela, aberto no travesseiro. Ela está lendo finalmente. Quer comentar o enredo, e recorda que não pode falar ou amansar as costas dela com seus dedos tortos. Ela chorará até descer na parada do soluço. Ou do grito.

(…)

.:. Fabricio Carpinejar .:.

*

Táxi da ida: 43 reais
Táxi da volta: 37 reais
Não ter conseguido fechar a maldita conta da Caixa Econômica, dum nego que morreu faz 4 anos (conta na qual, bái dê uêi, tem 290 reaus): Não tem preço.

Sério, caras. O Brasil é inviável. 4 anos debaixo da terra e meu pai tá mais vivo que eu. Num guento mais.
Deixa eu ficar melhorzinha pra catar aquele LV, fios.

(…)

*
É tão incrível como eu sou despreparada pras coisas práticas da vida.
Pra vida real.
Passei as horas dessa semana perdida entre papéis e firmas reconhecidas e alvarás e... maiis nada. Estou imprestável pro resto. O livro novo não recebeu uma linha nova sequer. Não liguei pros amigos, não fui ver minha mãe como disse que faria, minha tradução está atrasada. Nada. Eu sou frouxa e inútil e perco meu humor, meu prumo e minha cabeça com essas coisas. São oito da noite e eu ainda estou mal, pelo dia, pela semana. São oito da noite e eu ainda não me recuperei. E o dia amanhã vai ser uma lenha. Enfim, é muita viadagem.
Eu tinha que morar no campo e ter procuradores, empregados, paz. Silêncio. Um laguinho.
Rá.
Não é o Brasil que é inviável.
Sou eu.

Drops da Fal

Miss Sarajane

Ontem aprendemos no Fantástico que a Terra está viva, é mulata já quase azul, e talvez até saia no Salgueiro.

De acordo com o cientista e gaiato Jim Lovelock, Saturno coleciona anéis, Urano é mano perigoso, e nossa querida Gayza é de Vênus e nasceu virada pra Lua. Mas nem tudo são flores: o homem mau quer inverter seus pólos novamente, ainda que de Marte não obtenha senão a esterilidade...

Neste meio tempo, nossa Terra sofre os revertérios de qualquer adolescente rebelde, em busca de autoconhecimento e sexo barato. Tenta se vingar mas só machuca a si mesma; sofre de gases por conta de uma dieta desbalanceada; fica mareada com qualquer litro a mais; topa banhos-de-sol indevidos, sofrendo com isso insolação e queimaduras graves.

Felizmente, Bono Vox, pai e exemplo, transformará ao menos esse último quadro. Pra quem já erradicou a fome, a miséria, o bom-gosto e as guerras entre seus bichinhos de estimação, arranjar protetor solar e uns óculos escuros espalhafatosos é o de menos.

Grande Boina, é "o cara". Só falta aprender a cantar, mas não se pode ter tudo. E ele tem estado muito ocupado para cuidar de coisas tão menores e abstratas como a música, a arte, ou o mero senso de ridículo.

dies irae

Um Passeio Por Sao Paulo

(…)
Essa é a famosa Ponte dos Remédios, sobre o rio Tietê. Ou sobre o Rio Pinheiros. Não há absolutamente nenhuma diferença entre o Rio Tietê e o Rio Pinheiros, eu acho.

O poeta Mário de Andrade se matou pulando dessa ponte, infeliz por causa do seu amor não-correspondido pelo Vigilante Rodoviário. Desde então um homem misterioso vestido de guarda rodoviário aparece todos os anos e joga flores na água.
(…)

Alexandre Soares Silva

21.1.06

Loucura

Visualizem: no primeiro banco de um microônibus, uma senhora carregando mais pacotes do que eu ou você seríamos capazes ocupa os dois lugares. O motorista, muito educadamente, pede:
— Será que a senhora poderia liberar um lugar?
— QUE FOI? EU SENTO ONDE EU QUISER!
— Eu sei, senhora. A senhora senta onde quiser, mas não pode ocupar dois lugares. Tirando isso, pode até viajar de graça.
— VOU DE GRAÇA MESMO! EU TENHO SETENTA E DOIS ANOS, TÁ ME OUVINDO? PERAÍ, DEIXA EU ACHAR MINHA IDENTIDADE.
Ela começa a fuçar na bolsa, na outra bolsa, nas sacolas todas. Enquanto isso, resmunga. Muito. O motorista desiste:
— Não precisa não, senhora. Deixa quieto.
— NÃO FICO QUIETA NÃO! QUEM MANDA NA MINHA BOCA SOU EU, ME RESPEITE!
— Eu não falei pra senhora ficar quieta. Eu tenho educação, ao contrário da senhora.
— EU SOU ESQUIZOFRÊNICA, NÃO ME ENCHE O SACO!
Taí. A frase dava um bom adesivo.

Jesus, me chicoteia!

TATUAGEM, CRISÂNTEMOS E BECKETT

Despindo-me e analisando minhas tatuagens de velho lobo do mar, chego à conclusão de que as quatrocentas garatujas espalhadas por meu combalido corpo não me fazem diferente de muito vivente metido a servir de exemplo por aí. Tenho um rei na barriga, uma cascavel no peito, o mundo na palma da mão, uma boca no cotovelo e um tolete de bosta na cabeça. Mas ao menos trago um ramo de crisântemos azuis tatuados na alma, devaneador incurável que sou. Tão devaneador que me esqueci de que tirei a roupa não para ficar tecendo analogia entre minhas tatuagens e os atributos de certas pessoas, mas para mostrar a Millicent que a tattoo “Beckett” no meu pau, em vez de aludir ao teatro contemporâneo, consiste na verdade na abreviação de “Benemérito Patrocinador do Grêmio Recreativo, Esportivo e Cultural do Porto de Nantuckett”. Entretanto, com a altíssima carga de estresse advinda das últimas batalhas navais, periga é eu acabar deixando Millicent esperando Godot.

Ao Mirante, Nelson!

19.1.06

UM PAPINHO MANEIRO

Estes dias um cara me adicionou no MSN e eu, como não tinha nada melhor para fazer, aceitei. Mal sabia eu que estava prestes a embarcar em um dos mais Edificantes Diálogos que a maravilhosa tecnologia moderna é capaz de propiciar.

Sente a pressão, malaco [texto não editado]:

BETO-MIT- . diz:
bom dia !!!!
BETO-MIT- . diz:
de onde tc ???
Pe.Levedo diz:
SP
Pe.Levedo diz:
e você?
BETO-MIT- . diz:
de Gov. valadares - MG
BETO-MIT- . diz:
o que faz !!!??
Pe.Levedo diz:
no momento estou instalando o oracle 10g no meu computador de casa
BETO-MIT- . diz:
mas qual sua profissao !!!???
Pe.Levedo diz:
analista de TI
Pe.Levedo diz:
ou você pensou que eu era padre?
BETO-MIT- . diz:
sim !!!!!
Pe.Levedo diz:
eu FUI padre
BETO-MIT- . diz:
saiu quando !!!???
Pe.Levedo diz:
esse ano... em março
BETO-MIT- . diz:
qual congregação vc era !!!!!
Pe.Levedo diz:
marista
Pe.Levedo diz:
e você, faz o que?
BETO-MIT- . diz:
estou indo pro mosteiro de sao bento !!!!! pq vc saiu !!!???
Pe.Levedo diz:
perdi a vocação. é uma looonga história
(…)

a IMPERDÍVEL continuação está no Padre Levedo

18.1.06

De ida para o passado

no que pensei em voltar
eu já estava ali:
buscando cabular
o dia em que nasci

depois de tudo perdido
e antes de qualquer achado
me flagrei decidido
a faltar ao próprio batizado

assim, pelo sim
ou pelo não
não compareci
à primeira comunhão

velocíssimo
e extremamente lento,
estive dia e noite ausente
na minha festa de casamento

as outras datas todas
suportaram minhas ausências:
passei a vida inteira disposto
a ir às últimas conseqüências

no fim, pro meu enterro,
por meu acerto ou por meu erro
eu até pensei que iria

mas essa jornada
foi imprevistamente adiada
até uma suposta missa de sétimo dia

Relaxando furiosamente

Abaixo a opiniao publica

Sempre que me diziam que "o maior adversário do Brasil nesta Copa é o próprio Brasil", eu era tomado por uma convicção quase religiosa de estar diante de um perfeito imbecil.

Mas de tanto falarem, ou de errar feio na loteria esportiva, comecei a crer que me revelavam a Verdade. Juro. Uma Verdade Metafísica, uma Verdade Matemática. E que portanto só estava faltando alguém demonstrar. Mas agora não falta mais. A prova de que o Brasil seja o seu maior adversário na Copa:

Dida: tão burro quanto aparenta. Atabalhoado pra sair do gol, erra passes de meio metro, e é um incorrigível frangueiro. Frangueiríssimo. No passado, defendeu pênaltis cobrados à sua direita; mas depois o pessoal deu reparo.

Cafú: pra que serve um lateral que não sabe cruzar? Só se for pra confundir os adversários. Sua única virtude, um formidável preparo físico, foi pra cucuia há tempos, razão por que consagrou-se como o recordista de faltas na última Copa. Mas nesta ele promete se superar.

Lúcio: sua principal jogada é ir ao ataque perder a bola. Depois ele se destempera e passa a distribuir chutões. Nos companheiros, nos adversários, nos bandeirinhas; indiscriminadamente.

Roque Júnior: surpreende que não tenha feito a vida no Japão, vez que o ippon em lances de bola parada seja sua característica mais marcante -- mais até do que o cabelo. Ultimamente, vem sendo substituído pela eterna promessa Juan, zagueiro discretíssimo, que se sustenta via o mito vago-específico de um certo apuro técnico, que Popper jamais considerou cientificamente falsificável.

Roberto Carlos: lateral que só faz cobrar lateral. Criador da fabulosa biciscrota, fez três gols de falta na vida, e é natural que por isso sua poderosa canhota seja mundialmente celebrada. Possivelmente, o jogador mais mascarado de toda história (não só do futebol, mas de todos os esportes), e por isso humilhado regularmente em competições de âmbito mundial, nacional, ou interbairros. Prefiram o cantor.

Emerson: voltante fundamental para a conquista de 2002, ao se contundir na véspera do torneio.

Zé Roberto: nem ele sabe bem o que está fazendo por ali, quando Juninho Pernambucano é um dos melhores segundos volantes do mundo -- posição que, junto com a ponta esquerda, é onde se costumam alocar os cafés-com-leite toda pelada.

Kaká: a mediocridade levada às últimas conseqüências. Jogador nota 7. Seu recorde foi um 7,5, ocasião em que apanhou de cinta e sacrificou as cabras. Regularidade ali é mato.

Ronaldinho Gaúcho: o melhor do mundo, a magia do futebol brasileiro feita carne. Mas só quando joga pelo Barcelona, que ninguém é de ferro.

Ronaldo Bussunda: já foi um grande atacante; agora é um atacante grande. Ou extra-grande, dependendo da marca.

Adriano: fez uma boa temporada, e só. Sua principal jogada, mandar o canudo da entrada da área, impressionou no começo, mas agora é facilmente marcável. Muito brucutu, eventualmente realiza uma jogada de nível mediano, surpreendendo a zaga adversária. É nossa maior esperança.

Quod Erat Demonstrandum. E isso sem nem falar do Zagallo.

Em breve analisaremos os reservas, as pinturas de Parreira, as viúvas de Garrincha, e, se não rolar um trem da alegria em junho, o caixa-dois de Ricardo Peixeira.

dies iræ

17.1.06

Top chavões de artistas que são um fracasso de público, crítica e vendas

1. Este é um trabalho conceitual

2. A pirataria é realmente um grande problema

3. "Infelizmente esta onda de funk carioca/sertanejo/pagode/axé dificulta a entrada no mercado de um trabalho que prima pela qualidade"

4. "Estou testando novas sonoridades"

5. É que eu optei por lançar por uma gravadora independente

6. Não pago jabá para as rádios, por isso minha música não toca

7. Não me importo com a opinião dos críticos. O público é mais importante para mim

Homem Chavão

retardado

Em 1996, no primeiro ano de Jornalismo -todos estão cansados dessa história, não?- fiz um ensaio fotográfico, para a matéria de Fotojornalismo -ah, 4 anos perdidos naqueles banquinhos azuis!!!- com cadáveres. Ficou bizarro, muito bizarro. Meu colega e eu deveríamos ter estampado aquelas fotos em lancheiras, fraldas e mamadeiras e tentado faturar uma grana no filão comercial onde Maurício de Souza e o pessoal do Smilinguido ganham a vida - e isto não é um trocadilho. O engraçado é que, no meio de todos aqueles corpos de indigentes, reconheci um tio meu, desaparecido há 15 anos. Tava lá, deitado no formol, pelado, com mais uns dois ou três caras que pareciam amigos dele. Viver ali não devia ser muito fácil, mas pelo menos não precisava se incomodar em ligar pra casa toda semana...
Estou ficando completamente retardado
Trilha Sonora para um Sábado Modorrento de Calor Infernal: Coral de Surdos-Mudos da Marinha Singin' Cole Porter. Tem um solo de apito de cachorro capaz de arrancar sorrisos ate uma atendente de Pronto-Socorro. Tenho outro cd com um coral de vozes de pessoas que sofreram traqueostomia cantando Tom Waits. O que se pode esperar de um dia em que, voce poe no canal de esportes, ta passando Campeonato Carioca de Basquete Masculino. Poe no outro canal de esportes, ta passando Campeonato Carioca de Basquete Feminino. Porra, que saco. So faltava os jogadores nao terem os braços...Ow...tah muito quente e eu estou ficando completamente retardado.

BENETT

15.1.06

conversas furtadas

CAMELÔS EM PORTO ALEGRE
— É isso ái, o Brasil não tem cultura.
— Educação.
— É, o Brasil não tem educação.

---

J'ACCUSE!
— Vitória, conta pra tia: tá contente com o bebê que vai nascer?
— Sim, já escolhi os nomes: Bruna, Nicole ou Monique!
— Lindos! mas tem que escolher nome de menino também!
— De menino, só gosto de João Vitor!
— Mas a tua mãe falou em Vitor Hugo.
— Não, Vitor Hugo não pode ser, porque Vitor Hugo não é nome de bebê, é nome de homem.

---

CIDADANIA
— A vida é minha e você não pode se meter, mãe.
— Filho, você só tem 7 anos.

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METRÔ
— Meu computador é como a minha calcinha. Mais íntimo, até.

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UM ELEVADOR MUITO LOUCO
— Deixa ver... Eu vou descer no segundo.
— ...
— Eu vou com o senhor até o sétimo, porque o senhor está de camisa verde. Depois eu volto para o dois.
— Ah, tá...
— Verde é a cor de São Jorge.
— Ah, é? Eu gosto de verde.
— Mesmo? Quem sabe o senhor tem mediunidade?
— É, nunca se sabe...
— É.
— Bom, uma boa noite para a senhora.

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ÁLBUM DE FOTOS
— Você não achou aquela foto medonha?
— Que foto?
— Essa que você ficou olhando um tempo e acabou de passar de folha...ó, essa aqui.
— Ahn...
— Credo, essa menina não parece um traveco?
— Hahaha! Não quis dizer porque é chato, mas eu pensei exatamente a mesma coisa.
— Nossa, muito feia essa menina.
— É! E essa mulher aqui também parece um... Credo! Coisa medonha.
— Essa é a minha mãe.

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BRINCOS NOVOS
— Não, nessa farmácia eles também não furam orelha. Disseram que tem de ser em "farmácia mais simples", ou seja, mais vagabunda.
— Mais vagabunda?
— É, tipo essa aqui, só que pior.

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ATÉ NA PADARIA
— Amor, diz que eu posso fazer uma coisa antes de saber o que é?
— Não.
— Ah, deixa, vai!
— Não.
— Deixa eu espremer.
— Não. Não quero que tu esprema.
— Mas eu quero que tu fique bonito. Tá feio assim.
— Deixa ficar um pouco feinho.

entre centenas de outras no conversas furtadas

14.1.06

Paliativo

Só na terceira noite resolvi beber. Não dormia desde domingo e a semana se encaminhava para o fim. Fiz exercícios, tomei leite morno, cortei o café. Nada adiantou. Não conseguia dormir. O tempo simplesmente não passava. Um ano em uma semana. Uma vida em poucos dias. Era madrugada, passado das duas. Precisava dormir, como fosse. Emboquei o litro de absinto na cabeceira da cama. Três goles generosos. Era como tivesse engolido um gato vivo banhado em ânis. Bebida horrível. Forte e doce. Nunca gostei destas bebidinhas de veado. Mas, diziam, ter efeitos psicotrópicos compensadores. Para garantir entupi o cachimbo com um velho fumo. Tão velho que não consegui enrolar. Cachimbo de raiz-de-roseira ou, não sei o que - outra coisa de veado que não sei porque fui comprar. Do tempo que eu pensava que intelectual tinha que ser meio aveadado. Pode ser! Pode até ser. Mas nunca levei jeito. Nem para intelectual nem para veado. Prefiro charutos e uísque, puros. A gente pensa como uma metralhadora na mão de um macaco entupido de cafeína, quando a gente fuma e bebe muito rápido. Merda. Eram pouco mais de três quando o litro chegou ao meio e o fumo acabou. Acordei as seis. A empregada me achou caído. Parte no sofá, parte no chão. Disse, que eu fosse para cama. Eu precisava trabalhar. Merda de emprego. Levantei, e a sensação que tive foi de que era um boneco inflável e, que haviam me enchido com água. Sensação estranha. Tentei um banho, cai no banheiro. Merda. Olhei no espelho o vi meu olho inchado e algumas marcas em minha cara - como se tivesse lutado boxe sem luvas. Então lembrei que eu mesmo me esmurrara, na noite passada. Dor física para esquecer a psíquica. Dizem que funciona, pelo menos como paliativo. Paliativo, palavrinha de veado.

Proclames da Alma...

o tempo passa, torcida brasileira

Eu:
A Dani tá grávida. A Lia vai ganhar uma irmãzinha.

Gabriela, minha caçula de 6 anos:
Tão pequena e já vai ser irmã mais velha...

:: Mothern ::

13.1.06

Passa-anel

Trilha de roupas pelo chão da casa, meu caro Watson, quase sempre quer dizer que o crime acontece no quarto. Balé esquisito, marmanjo tentando tirar a roupa enquanto avança a caminho da cama e decifra lentamente os botões-da-bruza-que-você-usava (assim, pulando em um pé só com um braço em torno das costas dela e a outra mão brigando com a segunda perna da calça, enquanto ela dá aquela famosa reboladinha que faz descer a saia, mas dessa vez a saia não desce). Luxúria, concupiscência, um pecado qualquer de nome feio que precisa ser cometido com o mínimo possível de preliminares. Na passagem pela sala, ele teve tempo de socar o controle remoto, e os dois chegam ao quarto quase nus e ao som oh so inappropriate das variações para piano solo de Webern (ela: “alguém tá torturando o piano”), e caem na cama como um maremoto.

Três minutos ou três horas mais tarde ela sofre um acesso de riso incontrolável, contagiante. Ele sente que não é a causa da hilaridade, e ri junto mesmo que não entenda a piada. A cada vez que ela tenta parar e dizer alguma coisa, o riso volta, dentes brancos brilhando no escuro do quarto. “That bad, uh?”, ele diz, e ela ri e dispara um desses soquinhos de menina. “É que...”, e ela continua rindo, enquanto ele caminha no escuro até a cozinha e volta com um copo d’água, pede pra ela fechar os olhos, acende a luminária, rouba uma bisbilhotada rapidinha no corpo branco e luminoso que ela exibe por sobre as cobertas. Ela bebe um gole, sem nenhum indício de modéstia, e ele é que termina procurando o refúgio dos lençóis. “E aqui é o quarto”, ele diz, com voz de locutor e um gesto largo de corretor de imóveis, reativando a maquininha de risadas.

Quando ela pára de rir, pede desculpas. “Não estou rindo de. Você sabe”. Ele sabe, acena que sabe, diz que sabe, beija que sabe. “É que. Tanto tempo. Tanto, tanto tempo”. Ele faz que sim. “Você sabia que ia ser assim? Assim, tão...” Ele volta a fazer que sim. “E mesmo assim você nunca...” Ele dá de ombros: “Timing é tudo na vida”, diz, e acaricia o rosto dela, furtivamente. Na tentativa de impedir que ele interrompa a carícia, ela estende a mão esquerda, de seu esconderijo por sob o lençol. À luz da luminária, a aliança brilha. Os dois se apanham olhando para o anular da mão com que ela segura a mão dele contra o seio. Ela tira a aliança, coloca na mesinha de cabeceira. Ele fica sem jeito. “Deixa de ser tonto, meu”, ela diz, zombando do patois paulistano que ele não consegue deixar de empregar. Ele finge que ri, sem graça. Ela acrescenta: “I mean it. Nós dois sabemos perfeitamente o que estamos fazendo”. Silêncio. Ela olha nos olhos dele, preocupada. Ele hesita, mas sorri: “Eu sempre quis fazer de você uma mulher desonesta”.

Filthy McNasty

12.1.06

Carta aberta de Caetano Veloso ao Ministro Gilberto Gil

De Edson Aran

Minha preta divina e maravilhosa,

Tô muito magoado com tu. Com tu mais Leitão. Com tu mais Lula. Eu pensei que tu ia ser o coração tropicalista olodúnico desse governo petista. Mas não. Tu até foi no comecinho, quando financiou tradução da obra do grande Wally Salomão para o sânscrito e o aramaico. Pensei que depois vinha verba para antropólogos desconstruírem Djavan, fonoaudiólogos estudarem Gal, cubistas redesenharem Bethânia, sociólogos decifrarem Carla Perez, zoólogos estudarem axé music. Mas não. Tu largou o tropicalismo e se juntou ao petismo. Tu trocou a geléia geral pelo lamaçal geral. Entendo não, Preta. Populismo por populismo, o nosso era mais autêntico. Ilusionismo por ilusionismo, o nosso tinha mais swing. Embuste por embuste, o nosso era mais limpinho.
Minha única explicação, Preta, é saudade do Chacrinha. Tu devia estar nostálgico de se apresentar no Velho Guerreiro e aí, como o governo Lula é direitinho o programa do Chacrinha, tu aderiu. Só pode de ser isso.
Tô muito decepcionado com tu. Tu era meu chiclete e eu era tua banana. Tu era meu atabaque e eu era teu agogô. Tu era meu dodô e eu era teu osmar. Tu era minha cheila morena e eu era tua cheila loira. Mas não. Tu agora prefere é chafurdar com o Sá Leitão. Tu prefere ancinavar essa nação.
Não sei o motivo da briga tua com Ferreira Gullar. Só sei que tem dinheiro no meio e não me amarro a dinheiro não. Tudo que sei é que tu não escreve, tu não telefona, tu não manda flores. Tu não manda nem e-mail, descarado. Ordinário. Cafajeste. Aproveitador. Tá pensando o quê? Eu sou jovem ainda, acha que vou te esperar pra sempre?! Acha?!
Opa, desculpa, meu rei, me empolguei no debate cultural.
O que eu tenho a dizer pra tu é o seguinte: ou tu manda e-mail ainda hoje, ou tô de mal de tu e é pra sempre.
Bilim belém, nunca mais fica de bem.

Caetano Veloso

---

E-mail aberto do Ministro Gilberto Gil a Caetano Veloso

De Castelo

Meu leãozinho:

Magoe, não, meu bichim. Ói teu e-mail aí, viste? Respondi!
Se quiser venha comer um abará mais a gente aqui no ministério que repito a ti de viva-voz tudim. E em si-bemol sustenido.
O que, na verdade, eu proponho é fazermos juntos um ritual olodúnico-dessacralizante com o Leitão.
Chamamos Ferreira Gullar, Dona Canô, Gal, Bethânia, Daniela e o Carlito Marrom num terreiro. Ali pedimos ao Caboclo Cocada Branca pra baixar o Bispo Sardinha e comemos o Leitão simbolicamente. Melhor: oswaldianamente.
Como diria o Wally: uma festa cage-duchampiana com pitadas do uivo primodial de ginsberg.
Ou seria uma festa duchamp-ginsberguiana com pitadas do uivo primordial de cage?
Sei lá, porra. Poesia é excrescência, cada dia me convenço mais disso.
A idéia principal é estancarmos essa polêmica arretada, meu parabolicamarada.
O Gullar fica feliz e o Leitão fica no cargo.
E vamos cuidar de nossas propostas histórico-baianizantes. Tu escrevendo música pra trilha de filme em italiano, francês, servo-croata e querendo ser o João Gilberto. E eu tocando embolada em Paris para Kofi Annan.
Quer política cultural melhor que essa, meu rei?
A Bahia já nos deu régua e compasso e agora está dando euro.
Nós podemos retomar os ideais pagão-caymmicos, misturá-los com a poesia dos irmãos Campos e às letras do Peninha e fazer showmícios pelo mundo, agora com o apoio do Minc, do Bndes e das Casas Bahia.
Vamos nos pegar em público pra quê, meu Caê? Só se for pra retomar aquele nosso lance nos doces bárbaros. Mas, dessa vez, sem aquele trio elétrico enorme atrás da gente.
Tu sabes ao que estou me referindo. Porque todo tamarindo tem o seu agosto azedo. Mas cedo, antes que o janeiro doce manga venha ser também, serás meu parceiro solitário nesse itinerário da leveza pelo ar.
Agora, se não quiseres topar minha proposta de calçar as alpercatas da humildade e paz, tu já ouviu falar da pílula de alho? É uma pílula amarela. Cê toma uma daquela nem sabe o que é que sente, mas a dor-de-cotovelo já era.

Aquele abraço,

G.Gil

Blônicas

Condomínio

Uma andorinha fez ninho na caixa que envolve o condicionador de ar do escritório. Há uns passarinhos lá, disse o zelador, pelados ainda, mas não sei quantos. Tenho ouvido piados há semanas, todo dia. Só hoje, só agora, faz poucos minutos, abri a cortina e vi realmente a andorinha. Antes era uma sombra na cortina que ia e que vinha, supus que fosse um pardal.

Cheguei perto da janela distraído, abri a cortina, fui ver as nuvens, e ela chegou voando como na minha direção, desviando já bem perto de mim. Não veio à caixa do ninho, ao lado da janela: ficou voando em círculos, decerto com medo de mim e com medo de me deixar saber o lugar dos filhotes. Fez um círculo, na verdade uma elipse, fez duas, fez três. Tive remorso do medo dela e dei uns passos atrás, me escondi num canto do escritório. Não adiantou e ela não veio. Fez mais círculos. Quando ainda eu fechava a cortina ela resolveu-se enfim e ouvi piarem bastante na caixa outra vez.

(…)

Foram-se.

Cheguei da rua, escutei um piado — um conhecido — no ar. Olhei para o alto: uma andorinha. Voava com outras menores. Pode ter sido o primeiro vôo.

Não há mais piados na parede, os de que me queixei por semanas, falando só. Faz silêncio. Vou queixar-me agora disso? Quem sabe. Foram-se.

palavra ociosa em letra miúda

30 de dezembro

(…)
Hoje chamamos dois caras pra darem aquela geral no jardim e de repente encrencamos com uns 5 cedrinhos. Chamamos o cara e começamos a debater na presença dos cedrinhos se devíamos elimina-los a machadadas, com serrote ou com uma boa moto serra.
E eles ali, verdinhos, com uns 3 metros de altura, todos felizes.
No meio da conversa fomos ficando com pena e agora, depois de termos desistido do assassinato, ficamos griladões a vamos lá dizer que era brincadeirinha.
O Zé está duplamente culpado, porque há algumas semanas ele planeja o recolhimento de trocentos girinos que nasceram no nosso lago onde já temos uns 50 filhotes de tilápia com 5 cm cada um. Então, o Zé está preocupado com a superpopulação de sapos, imagina aquela sapada saindo do nosso laguinho. Mas agora ele disse que se não vai tirar os cedrinhos é sacanagem zunir longe os girinos.
Nós oscilamos muito entre predadores cruéis e ripongos revisitados.
(…)

Muié do Mei do Mato

10.1.06

Banheiro Feminino

- Filho da puta!
- Hã?
- *sopro raivoso* Eu queria dar pra ele e o idiota não notou!
- Quem?
- O Jorge...
- *olhos arregalados* Amiga, tu e o Jorge tão se pegando?
- Estávamos, agora não mais. Filho da puta.
- Ah, mas é assim mesmo, semana que vem você tenta de novo.
- Não, mas hoje era o último dia em que eu poderia dar pra ele.
- ?
- Esqueceu que eu tenho um casamento pra ir dia 28?
- E...?
- Bem, se eu for pro casamento dia 28, tenho de depilar a perna dia 26. Pra poder depilar com cera, tenho que deixar crescer durante quinze dias...Então, a partir do dia 11, nada de gilete. Hoje é dia 10, domingo. Eu tinha que ter dado ontem, que era sábado e eu podia chegar de madrugada em casa.
- Você transa de acordo com a sua depilação?
- Pode me chamar de neurótica.
- E em quê isso torna o Jorge um Filho da puta?
- A gente saiu sexta. Eu queria dar pra ele, mas não sabia se ia rolar ou não. Então, fuide calça comprida e levei a gilete na bolsa; se pintasse o clima, era só procurar o banheiro mais próximo.
- E pintou?
- Aí é que tá. Pintou UM clima, mas não rolou porque tinha uns amigos nossos lá, e tal...Mas quando a gente se despediu, ele me beliscou, sabe?
- No braço ou na cintura?
- Na cintura...
- Então ele realmente tava a fim!
- LÓGICO! Aí, eu pensei: "Hoje não deu, mas amanhã eu dou!" E convidei o Jorge pra sair. Ele rindo, sabe como é o Jorge, "se é pra diversão, pode me chamar!".
- E no sábado?
- Eu devia ter adivinhado. Devia ter levado a gilete na bolsa e pronto. Mas aí eu pensei que as minhas chances de dar seriam elevadas se eu usasse saia...E aí, tive de tomar aquele banho, esfregar com esponja, passar esfoliante, tomar cuidado pra não me cortar...
- Mas você nao é alérgica a gilete?
- O que eu não faço pra dar pro Jorge? Cá pra nós, aquele homem é alguma divindade hindu reencarnada no Brasil pra fazer as mulheres felizes na cama. Pelamor, nunca vi nada tão grand...ioso.
- *ar sonhador* É...
- Como é que você sabe?
- Hã, eu? Sei de nada, bobagem sua. Me conta, como foi no sábado?
- *Desconfiada* Huuuum...como eu tava dizendo, botei um vestido preto que fica quatro dedos acima do joelho. Uma coisa eu descobri: se você mostra demais, o homem aprecia, baba, mas se você mostra só um pouco o homem delira. Certo, botei o vestido e fui, toda perfumada e de pulseira, pro lugar combinado.
- E o Jorge?
- Primeiro, começou com um papinho de mandar mensagem pro meu celular dizendo que não tinha certeza se ia poder ir; depois, confirmou que ia, mas ia chegar meio atrasado. Quando enfim ele chegou, quarenta e dois minutos depois de me ligar dizendo que já estava a caminho, foi o golpe de misericórdia. - O que foi?
- Veio trazendo mais duas amigas....
- FILHO DA PUTA!
- Não disse? Além de ter desperdiçado meu último dia útil pra sexo do mês, estou com a perna pipocando de alergia...
- Filho da puta...

as aventuras da menina prodígio

9.1.06

o cavalo não come salada de pepino

(…)
Em 1860, quase dez anos após as suas primeiras experiências, as tentativas de Johann Reis davam frutos significativos, 16 anos antes do escocês Alexander Graham Bell reclamar a sua patente. A primeira frase transmitida pelo telefone de Reis foi “das pferd frisst keinen gurkensalat” (literalmente “o cavalo não come salada de pepino”). A demonstração pública do novo invento foi efectuada perante a Sociedade de Físicos de Frankfurt (Der Physikalische Verein) a 26 de Outubro de 1861. Na altura com apenas 27 anos de idade, Johann Philipp Reis proferiu uma palestra intitulada “Das Telefonieren Durch Galvanischen Strom” (“Telefonia Utilizando Corrente Galvânica”) e transmitiu os versos de uma canção através de um cabo de 100 metros, naquela que seria a primeira exibição pública que provava com sucesso a possibilidade teórica da conversão de variações de corrente eléctrica em ondas sonoras.
(…)

Rua da Judiaria

Quando eu era criança...

(…)

1) Quando eu era criança, acreditava que as estrelas eram os olhos de Deus, que piscavam de vez em quando para a gente apenas para que soubéssemos que havia um cara lá em cima de olho nas traquinagens que aprontávamos.

2) Quando eu era criança, assistia aos desenhos do Ligeirinho e me encantava ao ver aqueles feijões mexicanos que pulavam sozinhos. Uma das maiores frustrações de minha infância foi essa: nunca comi feijões que pulam.

3) Quando eu era criança, meu pai dizia que eu devia cuspir longe as sementes de melancia, porque se engolisse uma delas por acidente nasceriam outras melancias dentro do meu estômago. Pensava comigo mesmo: "ué, será que é assim que as mães ficam grávidas?".

4) Quando eu era criança, mantinha sempre os meus olhos atentos ao chão, porque acreditava piamente que um dia encontraria uma lâmpada mágica igual à do Aladim. O único problema é que o gênio provavelmente só saberia falar árabe, e eu ficava angustiado pensando em como conseguiria me fazer entender. Aliás, eu tinha na ponta da língua o primeiro pedido que faria ao gênio: "quero que o senhor me conceda mais cinqüenta desejos!".

5) Quando eu era criança, assisti a uma reportagem sobre um tal "morto que riu". A matéria relatava que durante um velório um dos presentes resolveu tirar uma foto do morto dentro do caixão. No entanto quando ele foi revelar os negativos levou o maior dos sustos, porque o morto aparecera sorrindo na fotografia. Até hoje sinto calafrios toda vez que lembro da cara do finado (sim, o "Fantástico" exibiu o retrato do mesmo no final da matéria). A propósito, eu também tinha medo de qualquer reportagem apresentada pelo Hélio Costa.

6) Quando eu era criança, acreditava que sempre chovia nos dias de Finados. E que essa chuva era na verdade as lágrimas derramadas pelos mortos que ficavam emocionados ao ver suas famílias visitando (ou não) seus túmulos.

7) Quando eu era criança, minha mãe dizia que se eu imitasse um gago por mais de cinco minutos, ficaria assim para sempre. Desde então, toda vez que eu imitava um ga-ga-gago, ficava de olho no cronômetro do meu relógio digital e esperava até que dessem exatamente quatro minutos e cinqüenta e nove segundos, para cessar a brincadeira bem em cima do deadline.

8) Quando eu era criança, me apaixonei irremediavelmente pela Daphne da Turma do Scubidu. Talvez seja essa a razão da minha atração por ruivas, sejam elas pintadas ou não.

9) Quando eu era criança, morria de medo de ficar engasgado com uma bala Soft. Certo dia, batata: realmente me engasguei com uma que ficou entalada na garganta. Fiquei tão desesperado que comecei a correr estabanado pelos corredores da casa da minha avó procurando por ajuda; no susto, acabei engolindo a maldita. Nunca mais pus uma Soft na boca.

10) Quando eu era criança, não conseguia entender como funciona o tal do Amor (aliás, o adulto aqui continua sem entender patavina nenhuma). Ficava imaginando: "pôxa, mas e se a minha alma gêmea morar na Finlândia ou na Nova Zelândia? Como a gente vai fazer pra se encontrar?".

fragmentos de Pensar Enlouquece, Pense Nisso.

8.1.06

Diário de Tóquio: O Mundo é Tricolor - O Jogo Final

Acordei apressado no dia 18. Já passava das 13:00hs em Tóquio. Meu pai tinha me ligado às 10:30hs pra me desejar boa sorte. Das 10:30 em diante dormi e tive a visão de que ganharíamos. Imaginei a emoção da vitória, a comemoração, o reencontro com os amigos. No escuro do quarto de hotel, ainda meio dormindo, fiquei emocionado. Mas peguei no sono. E quando acordei de novo, já estávamos, eu e meu companheiro de quarto, agitados pelos preparativos. Esse ritual pré-final de campeonato é sempre emocionante. Você acorda diferente, olha as coisas por outro ângulo, como se seu olhar, naquele único instante, fosse o último daquela era. Há sempre um AF (antes da final) e um DF (depois da final) na mente de um torcedor. Foi assim que, apressado e um pouco atrasado, saí do quarto correndo, todo aparementado e, na correria, dei uma parada na porta e uma boa olhada pelo interior do quarto, pensando comigo, numa mescla de pensamento positivo e cabalismo: “Só vejo essa imagem novamente como tricampeão”. E assim parti para o lobby do hotel.

Dezesseis andares abaixo encontrei cerca de 70 são-paulinos. Eram velhos, moços, meninos, adultos. Todos, rigorosamente todos, estavam ou com a camisa do time, ou com o rosto pintado, ou com qualquer adereço que não deixasse dúvidas do que ele vinha fazer ali. No meio da pequena aglomeração, algumas fotos em grupo. Ajudei a Independente a carregar malas para o ônibus, que continham quilos e quilos de camisas e bandeiras e, com isso, me senti um pouco parte da história daquela noite. Peguei meu ingresso das mãos do nosso guia e dei uma boa olhada para ele. Subi com o pé direito num dos 4 ônibus que nos levariam para Yokohama . Então partimos.

O trajeto levou cerca de 1:30hs, menos por conta da distância e mais pelo trânsito na saída de Tóquio, que nesse único ponto, lembra um pouco São Paulo. Era ainda cedo, 3 horas da tarde, e o jogo só começaria às 7:20 da noite do Japão. No caminho, íamos deixando o clima ainda mais quente com as histórias do “Seu” Abdias, um torcedor fanático tricolor que ia narrando fatos de décadas atrás com uma precisão de detalhes enciclopédica. Não pude resistir e acabei filmando-o descrevendo o time do São Paulo de 45/46: Gijo, Piolin e Renganeschi; Rui, Bauer e Noronha; Luisinho, Sastre, Leônidas, Remo e Teixerinha. E foi assim, nesse declamar de amores de são-paulinos, cada um contando uma história de um jogo ou de um elenco que presenciou, que fomos nos aproximando de Yokohama.

Chegamos ao Estádio Internacional por vota das (…)

A saga tri-color continua no AMARAR - De Volta à Capitar

PARADAS MÍSTICAS PARA 2006, POR PAI ALMIRANTE DE OXÓSSI

Seu Futuro na Bola de Cristal Líquido – para que perder tempo com resoluções de Ano Novo, se você pode ver 2006 inteirinho numa bola de cristal líquido de altíssima resolução – que no fim das contas é a única resolução que conta? Só mostro o que interessa: sucesso, realização profissional, dinheiro. No caso, meu sucesso ao prever seu futuro, minha realização profissional ao firmar-me como vidente sindicalizado e o dinheiro que receberei adiantado pela consulta. Sigilo absoluto. Ou relativo, se o pagamento for no cartão.

Seu Passado nas Cartas – traga as cartas que você recebeu da namorada, do tio, da irmã, do patrão, do cartório de protestos. Uma lida rápida nelas e conto todo o seu passado com margem mínima de erro. Se houver erro na margem é porque quem escreveu as cartas não entende picas de tabulação. Cobro adicional de 15% a cada vez que eu ler “estou afim de…” ou “derrepente”. Discrição garantida para cartas íntimas da namorada. Não conto nem para você.

Observo Búzios e Adivinho Tudo – basta enviar antecipadamente o correspondente a uma viagem de ida e volta a Búzios (R$ 2.200,00 com escala no Galeão) que eu vou lá, observo direitinho as paradas, a vida noturna, os pontos com mais mulher e os bacanais nos iates. Daí adivinharei onde posso me dar bem em 2006 e, claro, partirei para pesquisa de campo. Pelo módico adicional de 20% prometo contar tudinho a você quando eu voltar.

I-Ching pela Internet – garanto total rapidez: você joga seu I-Ching, leva quarenta minutos para ler aquela porra nas varetinhas, mais trinta fazendo as combinações de hexagramas, outros vinte lendo os hexagramas mutantes – aí me manda um e-mail contando o que deu. Não levarei menos que dois segundos para descobrir que interpretar “As asas da mariposa fazem ondular a superfície do lago” me dá um baita prejuízo se eu cobrar por palavra. Precisarei rever minha tabela.

Runas Africanas – para quem não acredita em miscigenação adivinhatória, esta veio para emplacar em 2006. Seguindo estritamente os preceitos do oráculo viking-iorubá Mama Africâner, a rainha da cocada branca, oferecemos a preço de custo o kit do-it-yourself: um jogo de runas, uma garrafa de aquavit, frango e farofa. Basta se concentrar, jogar as runas, deixar que elas que são brancas que se entendam e encher a cara. É a melhor maneira de você esquecer as merdas que fez em 2005.

Ao Mirante, Nelson!

6.1.06

ÁGUA VIVA

Quando meus pais foram morar no Iraque, eu tinha dezesseis anos. Não fui junto porque (felizmente) tinha acabado de passar no vestibular, e sinceramente, não tinha a menor vontade de morar num país em que mulheres são consideradas como seres inferiores a cachorros – e é bom lembrar que muçulmanos odeiam cachorros – e, além disso, minhas irmãs também iam ficar no Brasil. Claro que fomos nos despedir no aeroporto, afinal seriam pelo menos 6 meses sem nos vermos. É claro que alguns tios foram também, e é claro que um agregado chato resolveu me patrulhar por não estar derramando lágrimas, soluçando ou fazendo qualquer outro tipo de showzinho de emoção para diversão da platéia. Fiquei muito puta, mas em vez de dizer que não tinha satisfação nenhuma a dar pra ele e instruí-lo sobre o local mais apropriado para introduzir suas idéias sobre o comportamento que eu deveria ter, só falei que eu não era peru pra morrer de véspera e que quando a saudade batesse eu talvez chorasse – e podia até ligar pra ele avisando, caso ele fizesse mesmo muita questão de ver.

Quando eu abri o envelope do meu exame – que eu pensava ser de rotina – no elevador e vi as palavras “Oncológico positivo” tomei um susto, disse “Uau” e admito que contei pra minha mãe e, mais tarde, pro meu marido, sem o menor tato, assustando os dois mais do que devia e depois tendo que consolá-los. Mas só consegui sentir medo mesmo e chorar um pouco vários dias depois, já perto da cirurgia que levou embora meu recheio feminino quase todo e mais os gânglios linfáticos das pernas. Depois que parou de doer, acho que não chorei mais. E se chorei, esqueci completamente. Vai saber.

Quando o fdp do ladrão me abordou na porta da agência em que eu trabalhava, apontou uma arma pra mim e disse pra eu calar a boca e sair do carro, porque ele ia levá-lo, eu fiquei com tanto ódio do trabalho que ia dar pra ser ressarcida pelo seguro, do fato dele levar minha bolsa com todos os meus documentos, um canivete com aço de Toledo que eu havia ganho de um namoradinho havia mais de 20 anos, montes de bilhetinhos do gatim de desde a época do namoro, que nem senti medo, nem chorei, minhas mãos nem tremeram. Semanas depois, fiquei meio covarde pra sair sozinha, desconfiava de todo mundo na rua, não saía da agência depois das 6 sem alguém comigo. Mas isso também passou logo.

Anteontem, dia de Natal, fez um ano que o meu menino querido, meu “pupilo”, meu amigo, meu filhotinho de coração morreu num acidente estúpido, com a avançada idade de 23 anos. Lembrei dele o dia inteiro, e ainda que não lembrasse sozinha, no dia anterior, no posterior e no próprio, tudo conspirou pra essa lembrança : vi um carro capotado na rua, achei uma carta que ele havia me mandado quando eu me casei, encontrei revistas do Spawn pra todo lado em casa, passou Homem-Aranha na TV, ganhei o DVD do filme Billy Elliott da minha irmã. Mas essa lembrança não atrapalhou nem entristeceu meu natal, e não, não chorei. Na verdade, nessas 52 semanas desde que ele morreu, essa foi uma das poucas em que eu não derramei uma lágrima quando pensei nele. E eu pensei nele em todas.


Eu não sou durona. Eu não sou insensível. Eu às vezes choro com comercial vagabundo, filme mais ou menos, tirinhas do Calvin ou da Rose is Rose, música ouvida 800 vezes, posts em blogs de amigos ou de desconhecidos, um olhar do meu bem, um beijinho de lixa da Nina. Mas raramente consigo chorar quando se espera, quando se deve, quando “fica bem”. Talvez minhas emoções sejam retardadas, nos dois sentidos. Talvez seja um reflexo do meu gênio ruim. Talvez seja pura pirraça. Talvez seja porque alguma coisa em mim insiste em ser indomável, e as lágrimas sejam o último refúgio verdadeiro de liberdade total. Essa água aparece quando quer, ninguém a faz brotar, dela ninguém muda o curso, nela ninguém põe represa, ninguém jamais faz secar. Se eu tivesse um brasão, seu dístico seria este : Lacrimae libertas sunt.

Cyn City - UOL Blog

Súbito!

As vezes, quando está o maior silencio aqui no escritorio, me bate uma vontade enorme de cantar, bem alto, começar derrepente uma nota altissima, uma musica qualquer. pode ser gospel, pop, rock, eletronico axé. Só pelo prazer de cantar. masa minha timidez me impede, e então eu canto em silencio, com os meus pensamentos.

Respeito é Bom...

No hay banda

As pessoas não desconfiam do silêncio. Acostuma-se a pensar que o silêncio sempre sempre é um sinal de que tudo está bem, tudo está em ordem, tudo está em paz. Acostuma-se a pensar que quando as coisas não vão bem há barulho, há choro, há gritos, há tumulto. A quase ninguém ocorre que o silêncio possa ser um sinal de extremo perigo.

Quando uma floresta se imerge em silêncio absoluto, é um sinal inconfundível de que algo terrível está para acontecer.

MadTeaParty by DaniCast

3.1.06

QUANTAS PINTAS EM MINHAS COSTAS?

Estava dormindo de costas. Acordei com meu filho contando minhas pintas.

Ele gritava:
- Mais uma, mais uma.

Nos cálculos dele, tenho vinte e duas manchas. Não sei se ele parou de contar porque não sabe o resto dos números ou realmente achou vinte e duas. Não poderia me emocionar mais. Um filho aprendendo matemática em meu dorso, cuidando de mim, importando-se em adivinhar o que já vivi. Havia um calendário que superava as previsões. Minha pele chovia canivetes.

Nem sempre fixamos o tempo por aquilo que está na carne. Nossa alegria costuma ser limitada a um horário, a uma realização, a uma situação de fora. Não a um sentido maior de convivência, de descoberta pessoal. Confundimos estar alegre com ser alegre. E o ano não muda se acreditarmos que alguma coisa deve acontecer para ser feliz. Nada precisa acontecer para que a felicidade venha. Ela já deveria estar dentro despertando a delicadeza. Não pode ser condicionada a um plano profissional, emocional e de saúde. Não será a lentilha ou a roupa branca que determinarão a conduta. O que passou não acabou - ainda é. Ciscar para trás pode ser mais verdadeiro do que andar para frente.

Aceita-se a ilusão de que, ao apagar o ano passado, eliminam-se os problemas. Assinamos embaixo o pedido de lobotomia. Quantas virtudes e lembranças boas vão para o ralo? Confia-se que zerando o placar é mais fácil entrar em vantagem. A desmemória gera apenas a repetição. E uma repetição cansada e fingida da novidade. Não é necessário nascer de novo para ter chances. É necessário morrer várias vezes para ter chances. Esquecemos que a primeira refeição do ano costuma ser as sobras do jantar. É possível enganar o coração, não o estômago.

Observo uma arrogância em relação à vida. Como se não suportássemos a idéia de que a vida manda na gente. Se o roteiro não segue o que planejamos, começamos a lamentar e nos entristecer. Abalados pela idéia de que não foi o que queríamos, não se cogita reagir. Somos fracassos prematuros, com receio de exercitar a diferença. E a curiosidade, onde se coloca? E o improviso? Será que não falta um pouco de humildade para aceitar que ninguém vive solitariamente, que ninguém tem o destino pronto. Não pretendo disfarçar a minha solidão com o nome de "independência".

Quando resumimos o ano, ele se torna menor do que um dia. Viver é intimidade, não intimação. Viver um dia de cada vez tornará o ano mais longo. Viver uma pinta de cada vez. Observar o que ficou nas costas.

.:. Fabricio Carpinejar .:.

2.1.06

O abismo

- Quantos anos de casada?
- Quinze! Dá pra acreditar?
- Hoje em dia é um caso raro...
- E fiel!
- Isso é realmente um caso raro... E os seus filhos?
- Lindos... São o que eu fiz de melhor na vida.
- Você é linda...
- Por favor, não me toque assim...
- Do que tem medo?
- Eu não sei... Eu...
- Relaxa...
- Mas e se...
- Não vai acontecer nada de mais... Você mesma disse que seu marido também tem uma amante. Há quantos anos ele não toca seu rosto desse jeito? Seu rosto... suas mãos, braço... ombros, nuca...
- Pare, por favor. Ele nunca deixou que eu soubesse daquela mulher... Eu só soube porque mexo nas coisas dele... Porque não consigo me controlar.
- Então... Vem aqui...

Saliva... Há tempos não sentia gosto de saliva misturada na minha. Ele beija bem... Tão bem quanto agarra na medida certa, entre a dor e o carinho. Minha blusa... Tão fácil tirá-la. Como ele consegue fazer isso? Qualquer um faria... Escolhi a dedo na loja: decote, zíper na frente para que ele se sentisse provocado pela facilidade; cor de rosa, porque meu marido um dia me disse que era o tom que melhor cobria a minha pele. O que é que estou fazendo com meu casamento? Merda... Merda? Quando foi que eu comecei a falar palavrões desse jeito? Merda não é palavrão... Deixa de ser pudica. Palavrão é caralho, buceta, porra...

- Como você é gostosa...

Deus do céu! Se ele disser isso outra vez eu desmaio... O que está acontecendo comigo? O que estou fazendo? Meus filhos... Merda! Culpa maldita. O Roberto não merece isso... Eu o amo. Ele também me ama... Nunca deixou faltar nada em casa, sempre foi bom pai, trabalhador... E trepa com aquela vaca! Vaca, filha da puta, sirigaita de uma figa! Ele merece sim. Não... não chora. Não vai chorar agora porque isso seria ridículo. As crianças entenderiam... Segura essa lágrima. Elas entenderiam que não estou fazendo isso por mal, que só quero me sentir mulher novamente... Mas por que essa necessidade depois de tantos anos? Ah, esse desejo todo que ele demonstra por mim... Ele... Mas quem é ele? Preciso de tempo... As crianças entenderiam que eu mereço ser feliz... Mereço ser feliz, mereço ser feliz, mereço ser feliz...

- Não. Não posso... Pára! Desculpa... Eu não consigo. Não posso fazer isso com meus filhos, meu marido... Não posso fazer isso comigo mesma.
- Cala boca.
- Anh? O que...? Por favor, para com isso. Eu não quero... Estou pedindo pra parar.
- Já falei pra calar a boca, vadia!

O medo que me excitava e deslizava sobre a minha pele, imobilizou o meu corpo. Os fluídos se transformaram em sons que ecoavam no silêncio da minha mente. Parei de pensar. Meu cérebro parecia ter expulsado as palavras e dado lugar a um flashback dos últimos dias. Me vi com raiva do meu marido por me deixar tão insegura. Com raiva por bisbilhotar a carteira dele com a certeza de que encontraria os rastros do caso que ele estava tendo com a chefe. Me vi sorrindo para o moço do táxi só para me vingar... Falei mais do que devia sobre a minha vida, me insinuei, marquei encontro para o dia seguinte. Vi minhas crianças dando tchau ao entrarem na perua escolar... O batom vermelho no espelho do banheiro. O cheiro de água de colônia quando entrei no táxi, a mão dele esbarrando no meu joelho, meu sorriso ruborizado no retrovisor... Vi a paisagem que admirávamos enquanto subíamos a serra e vi ele encostar o carro em um lugar que ele chamava de seu mirante secreto. Senti meus pêlos arrepiarem por não conseguir parar de pensar que faríamos amor no banco de trás... Me vi mulher bonita mais uma vez... A mulher desejável que não via há tantos anos. Vi ele parecer doce e ao mesmo tempo rude. Paciente e, de repente, estúpido e cruel. Meus pensamentos findavam ali. Ouvia somente o barulho das minhas lágrimas, do suor, do sêmen, da saliva, do sangue, do motor... Fechei os olhos. Abri enquanto caia da ribanceira...

Licor de Marula com Flocos de Milho Açucarados

Certas pessoas dizem falar com Deus. Grande sorte a delas, enorme azar o Dele.

o mujique

naquela época tínhamos um texas

e um dia, vi que tudo tinha um fim, menos o convento das carmelitas. As fronteiras históricas do sentimentalismo. Enquanto a croácia pensa, o brazil bronzeia os mamilos. Saio de dentro dele e vejo pela janela bêbados de pijama jogando truco na praça. O natal já passou, deixando simone com cara de aracy de almeida. Lágrimas da puberdade não secam. Sonhei que a ditadura militar tinha voltado e que eu era presa. Eu negociava com um sargento enquanto minha amiga levava porrada na cara. Algumas vezes soa melodramático. Conheci um poeta famoso que me disse que ouvia as vibrações do mito, as catástrofes do mundo, as evocações do silêncio. Ele caía como um elefante sobre o papel. Não sei o que foi feito dele. Também pouco importa, agora estou surda. Vozes polimorfas não me alcançam. Foi fácil. Acabei de ler o livro de GGM. Está caduco. Escreve caduco para leitores caducos. Não digo que parece caduco. É caduco. Afogado na senilidade. Mas seus personagens vendem muito. Escrevem bem. Como quando se aprende a andar de bicicleta, ninguém esquece. É infinita a imaginação dos autores quando ouvem falar em royalties. Não condeno. A vida é difícil para poucos. Para a maioria, resta o inferno. Dia desses vou lhe pedir um autógrafo. Entro nele outra vez e ela passa com as pernas de fora pela esquina. Os bêbados de pijama param de jogar. As pernas dobram a rua. Como se nada fossem. Esquecemos. Eu gozo, tomo um café e me submeto à realidade. Ele fica lá deitado. Tive um professor que dizia que se é pra se submeter à realidade, um escritor não devia nem escrever. O bom escritor tem de vencer a realidade, vencer o desespero. Acho que estávamos falando de coisas diferentes. Aquela versão olímpica da literatura não me convencia. O desespero é meu e ninguém tasca. "O tempo vai dizer qual texto sobrevive." Que bobagem. Como se palavras e idéias fossem vinho. Caducos. Caducos. Palavras velhas perpetuam idéias velhas, mesmo que não pareça assim e sua beleza nos confunda. Que bunda. Nada é mais chato do que "conversar sobre a literatura de hoje". Gozo outra vez. Um dos bêbados de pijama acena pra mim com um sorriso. Feliz ano novo, ele grita. Não sabe que estou surda. Pouco adiantaria ouvi-lo. Eu não sei jogar truco. Vou passar o ano novo fodendo.

Prosa Caotica